Ougado

Vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa.

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De fonte tão segura como amável me chegaram ecos de haver sido recebida com atributo de alguma graça, em certas porções dos territórios por onde a nossa língua vai resistindo às investidas do bárbaro rico, um ou dois dos exemplos tratados na crónica anterior. Sendo assim, prossigo, já que a satisfação de alguma alma, se bem que momentânea e mesmo que incógnita e longínqua, é a maior paga que já tenho recebido deste ofício de entremear palavras com histórias ou, se quiserem, até com historietas, mas nunca com “estórias”, que é bicho que não como, mixórdia que não bebo, bordão que não uso, por desnecessidade e objecção de consciência.

Passemos então ao que nos traz cá, antes que um “tlim”, um “fiu”, um “bóri-bóri”, um “tara-rá” — ou seja lá qual for o ruído indicador da recepção de uma mensagem ou de uma “notificação” do sistema, programa ou aplicação que os chama ao culto do grupo fechado em circuito aberto — os afaste de mim e da minha prédica, esquecendo, ingratamente, que mais doce não se pode esta fazer, e não se faz, cá ou no estrangeiro.

Começo com arreigar, esse verbo medianamente circulante, que serve para descrever aquele que se prende à casa, à família, aos amigos, ao bairro, à cidade, ao país, à tradição, e dali não arreda pé, haja inundações ou secas, tal como a árvore forte que fica incólume à passagem da enxurrada. Mas dá-se o caso de arreigar ter parentesco com raiz – o que se conclui mais facilmente se soubermos que deriva do latim arradicare, que, por sua vez, vem de radicare, que significa lançar raízes – surgindo bem visível nas nossas palavras radicar (criar raízes; enraizar; arreigar) e radical (do latim radicale, da raiz). E tudo isto reforçando a ideia que já temos de que a ideia de raiz comunga da ideia de origem. Ora, voltando ao ponto de partida arradicare e ao ponto de chegada arreigar, não é muito difícil imaginar que pode faltar aqui um elo de ligação que nos possa explicar por que (razão) o “arra” passou a “arre”. E falta. Felizmente, no castelo em que eu moro, promovo a realização de escavações arqueológicas. De uma delas, desenterrámos um esqueleto quase petrificado que, depois de pincelado, escovado e lavado, se revelou ser do verbo arraigar, o tal elo de ligação em falta. Arraigar, sim, tem a vantagem de mostrar a correspondência quase total com arradicare, pelo menos no que diz respeito às primeiras sílabas da palavra, já que as médias foram sacrificadas à falta de ouvido musical dos povos nossos ancestrais, ao tempo em que conviveram com os invasores falantes de latim. Mas se arraigar tem a vantagem que comentávamos, tem a desvantagem de exigir uma ginástica articulatória muito em desconformidade com os dotes populares indígenas respectivos. E foi assim, mais ou menos assim, que arraigar foi arredondado lentamente, ano após ano (mais rapidamente nos bissextos), para arreigar.

Mais saboroso ainda é o caso de ougado. Ougado remete para o fenómeno rural do simplório que come com os olhos à falta de meios para ter à sua mesa o que por vezes descobre na dos outros. Ou daquele desgraçado que, em se preparando para comer uma atraente talhada de melancia, no Verão, ou uma colherada de papas de sarrabulho, no Inverno, lhe vê ser arrancado do espaço útil do abocanhar o objecto do abocanhamento tido como certo, quer por besta, quer por humano, quer por um composto dos dois que ainda transita muito por aí, e não só no confinamento das áreas rurais.

Não se pense que é coisa pouca (o acto de morder em seco), pois as sequelas (e não estou a falar de longas-metragens com continuação) daí advenientes podem ser múltiplas, maiores e multidisciplinares, para cá não faltar palavra tão em uso na academia e na política. Basta lembrar o sinal exterior mais conhecido do ougado – o cabelo arrepiado – para se concluir como hoje em dia as cidades estão tão pejadas de sofredores dessa doença que nem o gel nem o cabeleireiro a conseguem esconder. Tal como o monstro do Dr. Frankenstein, do livro de Mary Shelley, que seria ougado de vida, os exemplos abundam, selectivamente paradigmáticos segundo o seu público-alvo: o Herrera do F.C. Porto “pré-overhauling”, o violinista Nigel Kennedy, o mitológico Tântalo supliciado, cada um, à sua maneira, é simbólico do desafortunado que bem cedo na vido começou a receber lições de como conjugar frustrações regular e irregularmente.

– Deve ser muito bom, enguias de escabeche!...

– Como sabes, filho? Já comeste?...

– Não, senhora. Vi comer...

E passaram-se tantas vidas sem chegar a comer... Mas isso era antigamente, quando tudo era caríssimo e raro e distante. Hoje não há ougados, ou estão todos escondidos atrás das fragas delimitadoras do país atrasado imaginado pelos citadinos. Ou estão presos. Ou estão no Governo ou nas autarquias ou nos lugares de nomeação política da administração pública. Ou nos “reality shows”, que são espectáculos de realidade aumentada e formação diminuída, de um realismo chocante, quando não de sobre-realismo.

Antigamente, era um problema. Se uma criança não tinha apetite, excluindo-se a espinhela caída, o mau-olhado, as bichas, ou ter de resolver problemas de aritmética da escola primária em decímetros cúbicos de água necessários para encher uma banheira furada, podia dar-se o caso de estar ougada. Tinha de chamar-se a casa pessoa sabedora da receita ancestral: com a massa sobrante da fornada de broa, fazer uma rodela chata com um dedo de altura, se tanto, que a criança recebedora marcava com a ponta do seu dedo indicador. Indo a cozer e tirado do forno, deveria o ougado comer esse bolo ainda morno, atrás de uma porta que dê para dentro, até se saciar. Sobrando alguma parte, não pode esta deitar-se fora: só a podem comer as galinhas. Se tudo assim for feito, dois ou três dias depois recupera o ougado o seu apetite. Se não, óleo de fígado de bacalhau.

Mas que palavra vem a ser ougado? Bem, mais não é do que a corruptela de aguado, que se refere à água que cresce na boca de todo aquele que já esteve perante uma visão de um objecto cobiçado, normalmente um petisco real ou idealizado, mas não obrigatoriamente. É capacidade notável do homem — e mulheres também, não desfazendo — criar simbologias de tal modo elaboradas que chega a não as distinguir das realidades a partir das quais as projectou ou às quais, em espírito, as associou. Não esteve mal aquela pessoa que falou, em escritos, de um fingidor de tal sorte que chegava a fingir que era dor a dor que deveras sentia. É por isso que, diante de um trompetista prestes a entrar em palco, é proibido mencionar a palavra limão, pois o acréscimo de água na boca, em reacção à sugestão ácida, arruinar-lhe-ia a prestação instrumental. Não se faça!

Voltando à vaca fria: como se passa de aguado para ougado? Bem, fechando os ouvidos à melodia e elegendo como instrumento favorito o pesado bombo de festa, em cujas peles agredidas por grossas baquetas poderemos figurar os nosso tímpanos, enquanto se aceitam apostas sobre quais irão primeiro rebentar. Mas que é verdade que as palavras dão essas voltas sofrendo tratos de polé, sei-o eu de ouvir, em pequeno, as pessoas mais velhas dizerem todas “auga” em vez de água, bons alunos que eram da escola oral que veio pela Galiza abaixo, fazendo a nossa língua. Ora, de “auga”, “augado”. Mais fácil de dizer: ougado.

Correio Premente

De Azul Marinho e Tinto, lugar de Portela de Nexebra, freguesia de Alviobeira, concelho de Tomar: “Em todas as crónicas que escreveu até agora, que fiz questão de ler devagar, para melhor o apanhar em falso, nem uma só vez se referiu a um animal de estimação. Ora, eu nunca confiei em três tipos de pessoas: em quem não bebe, em quem não gosta de futebol e em quem não tem um animal de estimação. E não me tenho dado mal: tenho casa própria, tenho uma casa alugada a um banco, tenho um Audi, um jipe, uma moto de água e um realejo. E uma reforma jeitozinha do Parlamento Europeu. Por isso, apesar de tantas palavras que me deu, não confio em si. Não leve a mal, que eu também não levo.”

Não levo, não. Já tenho muitos anos disto. Sendo que, com “disto” tanto quero dizer anos de tarimba jornalística, de convívio com colegas e mestres com quem muito aprendi, de lidar com processos tecnológicos complexos na sua simplicidade, outros simples na sua mediocridade, como de aturar malucos, que são uma espécie de moscas atraídas pelo mel da tinta tipográfica. Por isso, é com algum receio que contemplo a hipótese de ter de corrigi-lo. Ao longo desta torrente de escrita que tem sido todo este projecto a que estou preso como lampreia a vidro de aquário, referi-me algumas vezes, de passagem, a animais, alguns dos quais ferozes, outros empalhados, e a dois em especial que quis que permanecessem incógnitos: o casal de crocodilos que habita o fosso que circunda o meu castelo, a Dinamene e o Lullabye, que o tratador tratava carinhosamente por “Dilma meme” e “Lula Vai!” e com quem tirava auto-retratos a escancarar-lhes as mandíbulas, para enviar à família (dele, tratador), até um deles (crocodilos), com a cumplicidade do outro, lhe ter arrancado o braço até ao antebraço. Agora, interpôs uma acção cível exigindo-me uma indemnização de três milhões de euros. A vida é bela.

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