Caixa, propriedade pública, controlo privado

Expor a CGD a um novo processo de inquérito parlamentar debilita a instituição e não os responsáveis pelos crimes de gestão.

Se há coisa que sabemos da Caixa Geral de Depósitos e de outras grandes empresas do sector empresarial do Estado é que estas são geridas ao serviço de interesses que raramente são públicos. A submissão dos partidos que se têm revezado – PS, PSD e CDS – no poder político ao poder económico é tal que praticamente todo o aparelho do Estado é colocado mais vezes ao serviço de interesses privados do que do interesse nacional e do interesse da generalidade dos cidadãos.

A forma como o Serviço Nacional de Saúde, o Sistema Público de Ensino, as empresas públicas de transportes, as infra-estruturas públicas, a banca pública são geridas é o reflexo dessa submissão do poder político ao poder económico. Em cada um desses sectores, os sucessivos governos vão aplicando uma política de depauperação e de descredibilização, muitas vezes por via da suborçamentação e do subfinanciamento que redundam na fragilização dos serviços ao ponto de os colocar em posição de desvantagem competitiva com os serviços privados ou até ao ponto de privatizarem as próprias empresas públicas. Nada disso é novo e essa estratégia de desmantelamento dos serviços públicos é partilhada por PSD, CDS e PS.

A Caixa Geral de Depósitos, o maior banco português, é um banco de propriedade exclusivamente pública, mas de gestão privada. Ao banco público ainda não se aplica a consigna do PCP que defende o controlo público da banca. Ou seja, a CGD foi sempre gerida como um receptáculo para quadros dos partidos no poder, como um campo de arranjinhos e de “pactos de regime”, desde que todos – PS, PSD e CDS – pudessem retirar qualquer coisa. As sucessivas nomeações para o conselho de administração da CGD mereceram sempre essa crítica e denúncia do PCP.

Ao longo dos últimos anos, os resultados da CGD reflectiram essa gestão, que em muito pouco diferiu da gestão dos bancos privados. Contudo, esses resultados materiais eram, também como nos outros bancos, ocultados contabilisticamente. Ou seja, a depreciação dos activos do balanço da CGD era suavizada para não serem registadas as devidas imparidades.

Hugo Soares discorre sobre a CGD e o papel do PCP na Comissão Parlamentar de Inquérito à Recapitalização da Caixa em artigo neste jornal, datado de dia 29 de Janeiro de 2019, e, nesse texto, arquitecta uma teia argumentativa que tem inúmeras falhas.

Sim, é verdade que a CGD foi mal gerida. O PCP sempre o disse.

Sim, é verdade que a CGD concedeu créditos que levantam as maiores suspeitas quanto à sua racionalidade. O PCP sempre o disse.

Sim, é verdade que a CGD serviu de ninho para os serventuários dos diversos partidos dos governos que dividiam a Administração da CGD como um bolo entre si próprios. O PCP sempre o disse.

A narrativa de Hugo Soares, contudo, acrescenta a estas duas conclusões ilícitas: a de que o descalabro das contas da CGD se deve exclusivamente à actuação da administração da CGD durante o período de governo de Sócrates e a de que o PCP tentou branquear as responsabilidades do PS na situação da CGD. Ora, quando à primeira conclusão ilícita, podemos dizer que, se é verdade que essas administrações têm responsabilidades na situação do banco, é igualmente verdade que nessas administrações pontificavam dirigentes até do CDS – como Celeste Cardona –, e que muitos dos negócios ruinosos da CGD foram realizados sob o controlo de outros governos e é também verdade – o que Hugo Soares deliberadamente oculta – que o Governo da troika dos mordomos Passos e Portas teve intervenção no sistema financeiro como nenhum outro governo, sendo o responsável pela situação descontrolada do BES e da sua resolução, pela destruição da chafarica do PSD que dava pelo nome de Banif, pela capitalização pública de BCP e BPI e pela profunda descapitalização da CGD. Tendo bloqueado o acesso da CGD aos fundos de recapitalização da troika, o governo PSD/CDS colocou a CGD numa situação de perda constante para deter um empréstimo do Estado sobre o qual pagava chorudos juros. A acrescentar a isso, pode igualmente afirmar-se com grande grau de certeza que a administração da CGD que dirigiu a instituição durante o mandato de PSD/CDS já detinha todos os meios para identificar os activos depreciados. Ou seja, independentemente de quem concedeu os empréstimos, a verdade é que, entre 2011 e 2015, esses créditos já deviam estar registados como imparidades. Se isso não ocorreu, apenas uma explicação pode desvendar o mistério: o PSD/CDS ocultaram esse passivo. Isso significa que têm uma responsabilidade da precisa mesma magnitude do que quem concedeu os créditos.

Talvez PSD/CDS não quisessem salvar a CGD, talvez quisessem apenas passar o período de eleições para depois confrontarem os portugueses com o problema da CGD. Seja qual for a explicação, e inclino-me para a primeira, a responsabilidade é evidente e é obliterada no artigo de Hugo Soares.

Todos puderam ver, nas transmissões em directo, qual foi o comportamento do PSD nas duas comissões de inquérito à CGD. Todos sabem que o PCP se opôs a um inquérito a um banco em funcionamento, principalmente sendo esse banco um importante, determinante, activo público. Todos pudemos ver a total ausência de escrúpulos patente na intervenção do PSD, dirigindo ataques sucessivos à CGD e à solução parlamentar que possibilitou pôr fim ao governo PSD/CDS de má memória.

As questões que ora se levantam perante os dados que vieram a público nas últimas semanas sobre a CGD, nomeadamente em torno da auditoria da EY, são de vária ordem e a primeira coloca-se logo ao sistema de supervisão.

Como foi possível que se tenha impedido o acesso aos devedores de todos os bancos privados, mas tenha sido tão fácil divulgar os devedores da CGD? Como podemos confiar num governador do Banco de Portugal que não intervém imediatamente na gestão da CGD ao ver que, durante boa parte do seu mandato, a CGD acumulava imparidades gigantescas? Governador esse renomeado também por PSD/CDS e agora pelo Governo PS.

Também devemos perguntar-nos se uma comissão de inquérito é o mecanismo adequado para indagar e inquirir sobre crimes, quando a comissão de inquérito não detém poder judicial. Ao Parlamento cabe identificar as práticas que lesaram o banco público e as respectivas responsabilidades. Tal trabalho está feito e está o resultado à frente dos nossos olhos: PS, PSD e CDS geriram a CGD a seu bel-prazer e fazendo os fretes do costume aos amigos e aos grupos económicos a quem sempre obedeceram. Expor a CGD a um novo processo de inquérito parlamentar debilita a instituição e não os responsáveis pelos crimes de gestão. Quem vai pagar a Comissão de Inquérito não é José Sócrates, nem Vara, nem Berardo, nem Faria de Oliveira, nem Macedo, que devem ser presentes a tribunal como arguidos ou testemunhas, assim entenda o Ministério Público. Quem vai pagar a Comissão de Inquérito, para que PSD e CDS possam ter novo palco para branquear as suas responsabilidades, para que o BE possa ter as atenções do costume e para que o PS não saia mal na fotografia, são os portugueses e a Caixa Geral de Depósitos que, neste momento, enquanto PS, PSD, CDS e BE se concentram no passado, está a ser preparada para privatizar no futuro.

E nisso, PS, PSD e CDS estão todos de acordo. Uns dizem, outros não.

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