O relativismo cultural e o exercício do poder público

A decisão de interdição de atividades tauromáquicas assumida no Concelho da Póvoa de Varzim é, a um tempo, ilegal e profundamente arbitrária.

Foi recentemente noticiado nas páginas deste jornal que a Câmara Municipal da Póvoa de Varzim declarou o concelho “antitouradas”, sustentando-se essa decisão num pretenso “corte inevitável com uma tradição que, tendo feito o seu caminho e prosseguido o seu objetivo, não tem, nos nossos dias, razão de ser”, e decretando-se, dessa forma, a interdição de corridas de toiros ou outros espetáculos que envolvam violência sobre animais, a partir de 1 de janeiro de 2019. Consultado o sítio da câmara, que pomposamente anunciou esta decisão como um “virar de página” da história da edilidade, verificamos que não está disponível, pelo menos até ao momento em que se escreveram estas linhas, a ata da referida deliberação camarária, pelo que ficamos sem conhecer os fundamentos dessa dita declaração histórica. O certo é que, e sem prejuízo das demais competências legais, a atuação da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, como a de qualquer outra câmara municipal, está delimitada pelo quadro das competências materiais e de funcionamento, bem como de outros preceitos nacionais e internacionais, aos quais todos os órgãos do Estado estão vinculados.

Ora, mesmo sem conhecer, repete-se, os fundamentos da decisão de interdição de corridas de toiros tomada e assumida publicamente pela edilidade poveira, parece-nos que a mesma não tem qualquer suporte jurídico, por várias razões que procuraremos enunciar de seguida. Desde logo, essa decisão não encontra arrimo em nenhuma das diversas alíneas do n.º 1 do artigo 33.º da Lei n.º 75/2013, na sua versão atualizada, pelo que, a não ser que se invoque na ata que inevitavelmente suportará a deliberação camarária um qualquer preceito legal atributivo de competências nesta matéria que se desconhece, a Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, bem como o seu presidente, são materialmente incompetentes para praticar o acto que tomaram. Mas, mais grave do que o vício formal em que essa decisão camarária incorre, o que verdadeiramente nela espanta é a sua manifesta desconformidade material à Lei, à Constituição e ao Direito Internacional, denunciando uma visão parcial e preconceituosa de um fenómeno que constitui um traço fortemente identitário do nosso povo e uma marca distintiva da cultura portuguesa.

É este, aliás, o espírito do legislador português quando, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 89/2014 de 11 de junho afirma, de forma expressa, que "a tauromaquia é, nas suas diversas manifestações, parte integrante do património da cultura popular portuguesa. Entre as várias expressões, práticas sociais, eventos festivos e rituais que compõem a tauromaquia, a importância dos espetáculos em praças de toiros está traduzida no número significativo de espectadores que assistem a este tipo de espetáculos". O reconhecimento legislativo mais não é, assim, do que a conformação da diretriz estabelecida para o Estado, pela Constituição da República Portuguesa (CRP), de “proteger e valorizar o Património Cultural do povo português” (artigo 9.º, e)).

De resto, também à luz do Direito Internacional, sobressaem um conjunto de convenções, recomendações e cartas internacionais promovidas pela UNESCO, pelo Conselho da Europa e pelo ICOMOS, que conferem eficácia à salvaguarda do Património Cultural. Estas normas têm, aliás, esclarecido sem qualquer equívoco a definição de Património Cultural. A título de exemplo, a Convenção de Faro – uma Convenção Quadro do Conselho da Europa de 2008 e aprovada pela Assembleia da República na Resolução n.º 47/2008 – define logo no seu artigo 2.º o conceito de Património Cultural. A mesma definição que vamos, aliás, encontrar em 2003, na Convenção da UNESCO para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial e onde podemos ler, também no artigo 2.º, que se entende por “património cultural imaterial as práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões – bem como os instrumentos, objetos, artefactos e espaços culturais que lhe estão associados – que as comunidades, os grupos e, sendo o caso, os indivíduos reconheçam como fazendo parte integrante do seu património cultural”. O enquadramento normativo, nacional e internacional, sumariamente resumido, protege todas as expressões e fenómenos culturais, entre os quais encontramos a cultura tauromáquica, colocando-a a coberto de ameaças ou imposições que proscrevam a liberdade cultural e a identidade dos povos, retirando-lhes o direito ao acesso e fruição das suas práticas e rituais.

Não se compreende, assim, por que razão um órgão de poder autárquico se arroga a pretensão de ignorar as recomendações do Direito Internacional, sobretudo num Estado-Nação como é Portugal, ao mesmo tempo que afronta deliberadamente o artigo 43.º, n.º 2 da CRP, que veda ao Estado a possibilidade de determinar “a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”.

A decisão de interdição de atividades tauromáquicas assumida no Concelho da Póvoa de Varzim é, a um tempo, ilegal e profundamente arbitrária, pois o papel do Estado não pode ser o de suprimir ou negligenciar manifestações culturais tendo, antes, o dever de salvaguardar e protegê-las. Mas, mais do que isso, aceitar uma tal decisão representaria uma concessão a um precedente perigoso para a nossa democracia, na medida em que o relativismo moral e cultural não pode, nunca, ascender a critério de decisão pública.

Os autores escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico

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