Novas revelações sobre a obra e a vida de Constantin Merezhkowsky

A vida na Terra apareceu há cerca de 3500 milhões de anos. Mas como? E como é que as primeiras células passaram a ter núcleo ou outras estruturas? Até ao início do século XX, eram questões sem resposta. Em 1905 e 1909, o russo Constantin Merezhkowsky avançou ideias visionárias sobre a origem e evolução dos seres vivos. Mas os seus estudos sobre a associação de seres com benefícios recíprocos, ou simbiose, foram rejeitados na época. No próximo mês, revelam-se novos dados sobre a obra e vida deste biólogo, num artigo na revista "History and Philosophy of the Life Sciences".

O biólogo Francisco Carrapiço, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, é um dos autores. Os outros são o canadiano Jan Sapp, da Universidade do Quebeque, em Montreal, que é o primeiro autor, e o russo Mikhail Zolotonosov, da Academia de Literatura Moderna Russa, em São Petersburgo.

A palavra "simbiose" significa, em grego, "viver em conjunto". No final do século XIX, os cientistas descobriam que alguns seres viviam em conjunto, como os líquenes. O botânico alemão Anton de Bary usou o termo "simbiose" pela primeira vez em 1879, para falar das provas de que os líquenes eram feitos de algas e fungos. Dois anos antes, o botânico alemão Albert Bernard Frank empregou o termo "simbiotismo", mas acabou por vingar "simbiose". Em 1885, Bernard Frank relatou a simbiose de fungos com raízes de árvores. Considerou-a benéfica para a planta e, por dizê-lo, foi ridicularizado. Os fungos só podiam ser parasitas. Foram, porém, surgindo exemplos de combinação entre seres vivos, em que simbiontes e hospedeiros dependiam uns dos outros.

Mas em 1905, Merezhkowsky, na Universidade de Kazan, na Rússia, deu os primeiros passos do que seria um avanço conceptual sobre a origem e evolução da vida. Referiu que, em simbiose com células primitivas, as cianobactérias - bactérias que fazem fotossíntese - deram origem a estruturas responsáveis pela fotossíntese nas células das plantas. Os cloroplastos.

Esta ideia já tinha sido proposta em 1883, por Andreas Schimper, por exemplo, só que foi Merezhkowsky quem a desenvolveu, depois de ter estado na Califórnia, de 1897 a 1902, a estudar diatomáceas, algas unicelulares.

Em 1909, publicou um trabalho mais aprofundado. Disse que o núcleo das células das plantas e dos animais também resultou da simbiose de bactérias com outros organismos primitivos com uma única célula. Ingeridas por esses organismos, as bactérias acabaram por se concentrar num ponto e ser rodeadas por uma membrana, aparecendo o núcleo. Disse ainda que a simbiose de dois ou mais organismos pode originar novos seres vivos e ser, assim, um motor da evolução. Baptizou esse processo de simbiogénese. "Este conceito era extremamente inovador. Mas na altura foi rejeitado", refere Carrapiço, acrescentando que o trabalho de Merezhkowsky é conhecido no Ocidente, mas de forma fragmentada e com algumas imprecisões. "Não quer dizer que antes dele outros autores não tenham considerado os processos simbióticos como mecanismo evolutivo, mas ele foi o primeiro a estruturá-lo."

Todos foram marginalizados. Agora, aceita-se que o núcleo das células, onde está a molécula de ADN, teve origem em bactérias colonizadoras de células primitivas sem núcleo. Aceita-se o mesmo para os cloroplastos. E para as mitocôndrias, que convertem os nutrientes em energia nas células dos animais. No citoplasma da célula, ambos têm genes.

Contributo científico desconhecido

O trabalho de 1909 também fala das condições da Terra quando apareceram as primeiras formas de vida. Mais uma vez, a passagem de Merezhkowsky pelos EUA, onde até agora não se sabia ter estado, influenciou-o. Estudou lá bactérias do parque de Yellowstone a viverem em condições extremas, daí se chamarem extremófilas, suportando uma temperatura superior à da ebulição da água.

Assim, considerou que a vida surgiu em condições extremas. Os mares primitivos seriam escaldantes e neles, a partir de compostos orgânicos, surgiram as primeiras formas de vida. "Avançou com a ideia de que as células primitivas foram capazes de viver em temperaturas elevadas."

Também disse que a atmosfera da Terra era diferente da actual. Não tinha oxigénio. Tanto esta ideia como a do aparecimento da vida a partir de compostos orgânicos - e, num ambiente extremo, uma hipótese em consideração nos últimos anos - são de grande pioneirismo. Até agora, não se sabia destes contributos de Merezhkowsky.

Pensava-se que só em 1924 o soviético Aleksander Oparin tinha proposto o modelo da atmosfera sem oxigénio (com metano, hidrogénio, amoníaco e água), ligado ao aparecimento de compostos orgânicos. Descargas eléctricas, oriundas de relâmpagos, formaram compostos orgânicos, que se depositaram nos mares, num caldo primordial. Desses compostos surgiriam as primeiras estruturas celulares.

Dizer, porém, que os compostos orgânicos apareceram na ausência de seres vivos, mesmo no tempo de Oparin, era uma "heresia". Durante séculos, a vida era desígnio de Deus, embora mesmo depois de Pasteur ter desacreditado a teoria da geração espontânea, em 1864, os cientistas não entenderem como aparecera. Se era preciso um ser vivo para gerar outro, então como surgiu o primeiro?

Só nos anos 50, o norte-americano Stanley Miller pegou nos gases e na água propostos por Oparin e passou à prática. Em Maio de 1953, descreveu na revista "Science" a experiência que simula como, naquela atmosfera, surgiram os aminoácidos, um dos constituintes da vida, e compostos orgânicos. "Até aí, dizia-se que não se podiam formar compostos orgânicos sem seres vivos." Sabe-se hoje que a atmosfera primitiva até teria tido outros gases (azoto, monóxido e dióxido de carbono), mas a experiência de Miller provou o que tinha de provar. "Hoje, é fácil perceber por que alguns cientistas vêem Merezhkowsky como visionário", remata a equipa.

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