Nova Iorque já não se veste de luto mas a dor deixou marcas na pele

Um ano depois do 11 de Setembro, a cidade mudou. A cidade permanece igual. A paisagem está dilacerada. A cidade está insegura. Em nome da auto-preservação, auto-censura-se. Em nome do medo, torna-se conservadora. Em nome da normalidade, endurece. Mudou quase tudo. Ou quase nada

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Há um ano, em Nova Iorque Tannen Maury/AFP

As fitas de azul, vermelho e branco desapareceram das lapelas. As montras já não estão decoradas com cartazes patrióticos. Os automóveis já não cruzam as ruas com bandeiras desfraldadas. Das paredes, já foram arrancadas as fotocópias com os rostos das vítimas. Os altares de rua foram para o lixo. São já raras as flores deixadas nas portas dos quartéis de bombeiros. E já não nos percorre um arrepio de cada vez que o motorista do metro se faz ouvir: "Este é o comboio E. Última paragem, World Trade Center."

O luto acabou em Nova Iorque. Um ano depois da tragédia, a cidade despiu a roupa preta. Na Washington Square, há concertos de jazz onde há um ano ardiam velas. A cidade regressou ao normal, porém nada é como era. Nancy Gibbs, da revista "Time", foi quem melhor explicou a contradição: é como quando nos morre o pai. Mergulhamos num forte estado de reflexão interna e, quando finalmente a dor nos liberta, nos deixa seguir em frente, percebemos que nos deixou marcas na pele. Para sempre.

Há um ano, dizia-se que Nova Iorque renasceria mais fraterna. Mas não se pode transformar uma grande cidade numa aldeia. Há um ano, dizia-se que não poderia viver mais com os mesmos valores. Afinal, está mais gélida, desapaixonada e egoísta. Há um ano, dizia-se que os nova-iorquinos iriam ser mais generosos. Como, se a vontade de preservar o cemitério que é o enorme buraco onde existia o World Trade Center choca com a necessidade de, dali, se arrancar por ano 210 milhões de dólares em rendas?

"Sítio histórico" é como definem o lugar os milhares que o visitam por dia; 3,6 milhões este ano, é a estimativa, o que significa que já é uma atracção turística, por acaso a mais visitada dos Estados Unidos. Estranho estatuto para a "zona zero", o lugar do impacte no dia em que os americanos souberam que estavam em guerra. Não saberem contra quem só adensou a ansiedade e a raiva naquele cenário de fim de mundo: as labaredas cor de laranja que saíam das torres expeliram fumo negro para um perfeito céu azul de Setembro; a cinza e o pó pintou de branco e prateado os milhares que sobreviveram às derrocadas; em plena manhã, fez-se noite no Sul de Manhattan; a pira funerária demorou mais de três meses a arder.

A cidade tinha que mudar. Está mais vulnerável, mas também mais dura. Está mais segura, mas nunca foi tão desconfiada. Nunca esteve tão informada, mas nunca foi tão devota aos valores da nação. Nunca foi tão amada, mas tornou-se intolerante. Continua liberal, mas nunca foi tão conservadora.

Mudanças subtis e mudanças imperceptíveis.

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