Pode o futebol unir o que a história dividiu?

Os jogadores da Bósnia viveram na primeira pessoa os horrores da guerra e percebem bem a importância que tem o Mundial para o país.

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Jogadores bósnios correm para a estreia num Campeonato do Mundo Ronaldo Schemidt/AFP

A Bósnia-Herzegovina não podia desejar uma estreia mais perfeita em Mundiais: o palco vai ser o Maracanã, o mais icónico estádio do mundo, e o adversário a bicampeã Argentina, liderada por Lionel Messi, num jogo que, independentemente do resultado, ficará para a história do futebol bósnio. Porém, para alcançar este privilégio, a selecção orientada por Safet Susic teve de percorrer um longo caminho e ultrapassar divisões históricas muito marcadas na sociedade bósnia. Garantido um lugar no Campeonato do Mundo organizado pelo Brasil, o céu é o limite para um grupo de jogadores elevados à condição de heróis pelos fervorosos adeptos.

Houve lágrimas em Kaunas, na Lituânia, onde em Outubro de 2013 a Bósnia-Herzegovina fechou as contas do apuramento para o Mundial 2014 graças a um golo de Ibisevic, que desatou a tão esperada festa. Estava em causa muito mais do que a participação no Campeonato do Mundo. Para as várias gerações marcadas pela guerra, o sucesso da selecção bósnia foi como um grito de esperança, uma prova de vida para um país que compreende três grupos nacionais – sérvios (ortodoxos), croatas (católicos) e muçulmanos bósnios – e onde ainda subsistem muitas divisões.

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A estreia da Bósnia num Mundial, 22 anos depois da declaração de independência, é um acontecimento que de alguma forma aproximou a população de 3,7 milhões. Como também o foram as arrasadoras cheias que afectaram a região em Maio, que geraram uma onda de solidariedade que ultrapassou fronteiras. Ou as manifestações de Fevereiro, contra a corrupção, que agrava os problemas económicos e o desemprego, e que levaram milhares para as ruas em dezenas de cidades.

“Estamos a lidar com uma revolta contra as elites nacionalistas: as pessoas da Bósnia perceberam finalmente quem é o verdadeiro inimigo – não são os outros grupos étnicos, mas sim os seus próprios líderes, que fingem protegê-los dos outros”, escreveu o filósofo Slavoj Zizek, num artigo sobre estas manifestações.

Isto também é verdade no futebol. “Somos um país demasiado pequeno para estar dividido. Na minha equipa todos gostam uns dos outros e eu sou como um pai para eles. Fico muito orgulhoso por conseguir unir as pessoas de uma forma que os políticos não conseguem. Mas a minha missão depende dos resultados”, afirmava Miroslav Blazevic, de quem Susic herdou o comando da selecção em 2009, na recta final da frustrada qualificação para o Mundial 2010 (a Bósnia caiu diante de Portugal no play-off, tal como viria a acontecer na corrida para o Euro 2012).

Selecção-mosaico
“O futebol pode unir um país como a Bósnia. A nossa selecção nacional ajudou-nos a dar um grande passo no sentido de ultrapassar as barreiras étnicas e religiosas. Estes jogadores cresceram no estrangeiro, portanto têm ideias diferentes sobre o futebol e a vida, o que é algo positivo”, corroborou Ivica Osim, ex-seleccionador da Jugoslávia, citado pela revista The FIFA Weekly.

A selecção que vai subir ao relvado do Maracanã reproduz o mosaico que é a Bósnia: o capitão Emir Spahic tem raízes croatas, Zvjezdan Misimovic é um sérvio bósnio e Edin Dzeko, a principal figura da equipa, é muçulmano.

O avançado do Manchester City é, de resto, um dos que teve uma experiência mais brutal durante a guerra: tinha completado seis anos há menos de três semanas quando começou o cerco de quase quatro anos a Sarajevo. A casa onde viviam foi destruída e Dzeko teve de mudar-se com os pais para casa dos avós. Recorda como foi viver cada um dos 1425 dias de bloqueio, sem outro escape do que o futebol a uma realidade cruel, como um período muito doloroso: “Todos os dias ouvíamos tiros. Vivi todo esse tempo com medo de perder a vida, de perder alguém da minha família ou amigos”. “Mas tenho de olhar para o futuro. Tento não pensar na guerra”, frisa o avançado.

O conflito moldou as vidas dos jogadores da selecção. Miralem Pjanic, por exemplo, partiu da Bósnia para o Luxemburgo, onde o pai, que jogava futebol, obteve um contrato que lhe permitiu deixar um país em turbulência. O jovem futebolista passaria depois pelo futebol francês, mas não cedeu ao chamamento de nenhum dos países: o objectivo sempre foi representar a Bósnia. “Sonhava com isto. Quando era miúdo fui desde o Luxemburgo com a minha família e amigos ver um jogo contra a Dinamarca, na qualificação para o Euro 2004. Desde esse dia que sonhava em representar o meu país numa grande competição e agora estamos lá. E tudo é possível”, sublinhou após a equipa ter carimbado a presença no Brasil.

O guarda-redes Asmir Begovic nunca viveu na Bósnia-Herzegovina enquanto adulto: tinha quatro anos quando se refugiou com os pais na Alemanha e aos nove viveu nova mudança, desta vez para o Canadá. Mas sempre se sentiu bósnio, até porque a família fazia questão de falar a língua em casa.

Prevê-se que o apoio que a Bósnia vai ter seja considerável. “Os adeptos das zonas sérvias normalmente apoiam as equipas sérvias e não a nossa. Mas não vivemos tempos normais, e isso é bom”, apontou Zvjezdan Misimovic, que nasceu em Munique mas cuja família continua a viver em Banja Luka, a segunda maior cidade da Bósnia e capital da República Srpska (a entidade sérvia da Bósnia).

“Mais do que um jogo”
E os adeptos não viajarão apenas do país natal, mas de todo o mundo. Costuma dizer-se nos Balcãs que há gente da região espalhada por todo o planeta – e a selecção até já teve oportunidade de comprovar isso num encontro de preparação para o Mundial, frente à Costa do Marfim em St. Louis (EUA). Foi um regresso a casa para Ibisevic, o autor do golo que permitiu à Bósnia carimbar o passaporte para o Brasil, que cresceu em St. Louis como refugiado, com a família. “Vi muitas, muitas coisas horríveis”, recorda o avançado, que perdeu o pai e um tio durante a guerra. “As pessoas de outros países não percebem. Para eles é só mais um jogo de futebol e o golo que eu marquei é apenas um golo. Mas não é só isso. As pessoas que me conhecem e à minha família sentem o mesmo: não é só um golo. É muito mais do que isso. É toda a história”.

Desde o começo que as coisas não foram fáceis. Em Novembro de 1995, ainda sem o reconhecimento da FIFA, uma selecção bósnia foi a Tirana jogar um particular com a Albânia. Mas apenas oito jogadores aceitaram participar e os responsáveis tiveram de andar quase porta a porta a pedir a colaboração de ex-futebolistas. Os equipamentos foram comprados numa loja a caminho do aeroporto. O resultado final seria uma derrota por 0-2, mas o primeiro passo estava dado.

Seguiu-se um processo evolutivo que incluiu uma suspensão da Federação bósnia por parte da FIFA e da UEFA – em 2011, por causa da existência de três presidentes, representativos dos três grupos nacionais. “Desde o castigo fizemos progressos fantásticos, porque as pessoas que ficaram amam e vivem o futebol. Por isso fomos recompensados com esta grande ocasião. Na Bósnia nada é garantido – mas temos uma adorável estrada pela frente e é nossa obrigação garantir que não tomamos o caminho errado”, frisou Muhamed Konjic, capitão da selecção bósnia no particular de Tirana, em 1995.

“Em determinado ponto, percebi que os nossos jogos são muito mais do que futebol para a gente na Bósnia. Percebi que podemos levar um pouco de felicidade a pessoas cujas vidas nem sempre são fáceis”, resumiu Senad Lulic.

Quando pisar o relvado do Maracanã a selecção bósnia carregará aos ombros as expectativas de todo um povo. A “Chama eterna”, o memorial às vítimas da II Guerra Mundial, localizado no centro de Sarajevo, pode até servir de inspiração a jogadores que conhecem bem a realidade da guerra.

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