Especialistas contra reforma sem revisão da Constituição

Ao fim de três anos de reformas, não se assiste a uma melhoria na eficiência da administração local e a reorganização das freguesias não se traduziu numa redução da despesa pública

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Especialistas apontam falhas às reformas feitas e dizem que se poderia ter ido mais longe Manuel Roberto

São poucos os aspectos positivos que os especialistas descortinam na reforma da administração local e há mesmo quem fale de uma “reforma essencialmente frustrada”, imposta pela troika e aprovada pelo Governo apenas com os votos dos dois partidos que sustentam a coligação governamental.

A poucos dias de terminar o programa de ajustamento acordado com a troika e o Governo português, o balanço destes três anos de reformas ao nível da administração local colhem a unanimidade dos especialistas: apontam falhas e afirmam que se poderia ter ido mais longe.

Dizem também que a fragilidade desta reforma reside na “total ausência de diagnóstico” e que, em algumas áreas, “foi feita de baixo para cima, como sucedeu com a reorganização das freguesias, de que resultou a redução de 1.168 (das 4259), uma das medidas mais contestadas em todo este processo.

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Fernando Ruivo, professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigador do Centro de Estudos Sociais, não tem dúvidas de que o poder local “sai muito debilitado” dos três anos de troika em Portugal e revela que “muitas das competências transferidas” para os municípios, feitas no âmbito da reforma, são apenas “discursivas”, porque, frisa, “são um conjunto de ideias muito bonitas, elaboradas nos gabinetes de Lisboa, mas com um grande desconhecimento do que é a realidade do país”.

Estruturada em quatro eixos prioritários - sector empresarial local, organização do território, gestão intermunicipal e financiamento e democracia local -, a reforma falhou na ambição de criar uma nova lei eleitoral para os órgãos das autarquias locais. A medida constava do quarto eixo da reforma, mas não avançou porque PSD e CDS não se entenderam quanto a este ponto.

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Ana Maria Belchior, professora do Departamento de Ciência Política e Políticas Públicas do Instituto Universitário de Lisboa, considera que a revisão da lei eleitoral dos órgãos autárquicos “é um assunto potencialmente gerador de conflito político e sem dividendos visíveis do ponto de vista financeiro [pelo que o Governo] optou pelo seu adiamento”.

O secretário de Estado da Administração Local, António Leitão Amaro, declara que este ponto não constava do memorando e que foi incluído na reforma por vontade do Governo, mas reconhece que falhou o consenso entre os dois partidos da maioria para se avançar nesta matéria.

António Cândido de Oliveira, professor da Escola/Faculdade de Direito da Universidade do Minho, afirma que em relação à reforma “faltou lucidez ao Governo pois esqueceu que não é possível transformar profundamente o poder local em Portugal sem uma revisão desta matéria na Constituição”. Mas faltou-lhe também “capacidade para a concretizar, porque anunciou a reforma de uma dúzia de leis e tropeçou logo dentro do próprio Governo ao não avançar com uma das principais: a prometida reforma eleitoral dos órgãos autárquicos locais”.

Por seu lado, André Azevedo Alves, professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica, não tem dúvidas que “teria sido possível ir mais longe e implementar reformas de carácter estrutural, nomeadamente no reforço da autonomia e responsabilização local, embora reconheça que foram tomadas algumas medidas importantes num contexto muito difícil, em especial no que diz respeito ao equilibro financeiro”.

Ao PÚBLICO, diz que “a reorganização das freguesias é o elemento que fica como mais visível, mas não terá sido nem o mais importante nem o mais bem conseguido, já que foi em larga medida imposto de cima para baixo, muitas vezes com deficiente fundamentação. Creio que as mudanças a nível das comunidades intermunicipais se revelarão, a prazo, mais relevantes, tal como as alterações no que diz respeito ao financiamento”.

Com excepção do primeiro eixo da reforma relativa ao sector empresarial local, José Melo Alexandrino, professor da Faculdade de Direito de Lisboa, tem uma opinião bastante crítica sobre toda a reforma, arrasando com a forma como o Governo procedeu à reorganização das freguesias. Para este especialista em Direito Municipal, a “reforma ignorou a Constituição e a carta europeia da autonomia local, porque as freguesias que foram extintas deveriam ter sido ouvidas uma a uma”.

Observa, também, que o Governo não respeitou a lei-quadro que existia, optando por revogá-la, fazendo uma lei ad-hoc”. “A lei-quadro protege as autarquias locais contra mudanças bruscas no seu estatuto. Agora não existe essa lei, há um vazio legal”, aponta o académico, assegurando que “não é possível continuar nesse processo da reforma dos municípios sem haver uma lei-quadro adequada”.

Para José Melo Alexandrino, “há algo de absurdo na lei relativamente à organização do território, porque ela não visa uma redução da despesa pública embora o memorando de entendimento imponha expressamente como finalidade do processo de reorganização e redução dos ente locais a redução de custos”. “Isto não foi uma reforma, foi uma violência ao estado de direito e às freguesias propriamente dito”, insurge-se, para assinalar que “não houve reorganização das freguesias nos Açores e na Madeira e que não se sabe porquê”.

“Para além das manifestas dificuldades sentidas na concepção, gestação e parto e de se tratar de uma reforma essencialmente frustrada, estamos também diante de uma lei [nº 75/2013 relativa à gestão municipal intermunicipal e financiamento] que desconsidera o passado, o presente e o futuro”, declara o professor da Faculdade de Direito de Lisboa.

António Cândido de Oliveira fala de “uma desastrada reforma das freguesias feita para mostrar serviço à troika”. Esta reforma obedeceu “a um critério irracional, assente fundamentalmente num critério uniforme de corte percentual do número de freguesias, esquecendo que mais de metade dos municípios tinham 10 freguesias ou menos e que só 20% daquelas que tinham mais de 30 freguesias, o Governo e a Assembleia da República destruíram 18 distritos, subbtituindo-os, sem necessidade, por mais de 20 comunidades intermunicipais, que são algo de estranho, pois nem são expressão de um verdadeiro associativismo municipal nem são autarquias locais”.

 

 

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