A escuta, essa outra forma de cuidados intensivos

O Movimento Ouvir Vozes oferece um espaço de partilha de experiências e de escuta, portanto essa “outra forma de cuidados intensivos” própria do medicar paciente. Este movimento, já com mais de 30 anos de história, ao oferecer um espaço de sociabilidade liberto do estigma associado a esta e outras experiências incompreendidas, é inspirador de uma atitude necessária a uma sociedade mais inclusiva.

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ADRIANO MIRANDA/PUBLICO

Na peça teatral Vozes Sem Conta, apresentada recentemente pela Marionet, em Coimbra, as vozes que os saberes psiquiátricos e o senso comum chamam alucinatórias surgem em primeiro plano. O palco figura a mente, sendo as vozes verdadeiramente as personagens desta peça. Tal como na experiência de quem ouve vozes que os outros não ouvem, estas vozes são muitas vezes duras, acusatórias, conspirativas. Mesmo quando se apresentam como aliadas, elas podem conduzir ao engano. E é no registo do engano que se têm declinado, ao longo de uma história secular, os significados e tonalidades da palavra “alucinação”: percepção sem objecto; allucinatio ou hallucinatio (em latim), erro de juízo, desvio, ignorância grosseira, abuso; e hallucinari, enganar-se, tomar uma coisa por outra, divagar, e também enganar os outros. Porém, no final da peça, na forma de um manifesto, as vozes clamam pelo direito à existência: querem, pelo menos, ser ouvidas. Ora, se são cruéis e enganadoras, porquê dar espaço a esta reivindicação? Não seria mais razoável e benéfico ignorar, patologizar e eliminar as vozes através do expediente prático e acessível da medicação? Esta é, em todo o caso, a abordagem hoje predominante nas propostas massificadas de saúde mental.

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Na peça teatral Vozes Sem Conta, apresentada recentemente pela Marionet, em Coimbra, as vozes que os saberes psiquiátricos e o senso comum chamam alucinatórias surgem em primeiro plano. O palco figura a mente, sendo as vozes verdadeiramente as personagens desta peça. Tal como na experiência de quem ouve vozes que os outros não ouvem, estas vozes são muitas vezes duras, acusatórias, conspirativas. Mesmo quando se apresentam como aliadas, elas podem conduzir ao engano. E é no registo do engano que se têm declinado, ao longo de uma história secular, os significados e tonalidades da palavra “alucinação”: percepção sem objecto; allucinatio ou hallucinatio (em latim), erro de juízo, desvio, ignorância grosseira, abuso; e hallucinari, enganar-se, tomar uma coisa por outra, divagar, e também enganar os outros. Porém, no final da peça, na forma de um manifesto, as vozes clamam pelo direito à existência: querem, pelo menos, ser ouvidas. Ora, se são cruéis e enganadoras, porquê dar espaço a esta reivindicação? Não seria mais razoável e benéfico ignorar, patologizar e eliminar as vozes através do expediente prático e acessível da medicação? Esta é, em todo o caso, a abordagem hoje predominante nas propostas massificadas de saúde mental.

Produzida no contexto de uma parceria com o Movimento Ouvir Vozes Portugal, a Rádio Aurora – a Outra Voz e baseada em narrativas de ouvidores/as de vozes, a peça faz-se veículo de uma questão constitutiva de vários movimentos que, contra a pressão normalizadora das práticas terapêuticas, valorizam os sofrimentos, a potência e o saber daqueles cuja experiência não é consensual ou facilmente assimilável. Em diversos lugares do mundo, movimentos de utentes e ex-utentes de serviços psiquiátricos, por vezes com o apoio de profissionais aliados e de activistas, têm reivindicado um lugar para o Conhecimento Baseado na Experiência destas pessoas. São disso exemplo as diversas propostas de alternativas e complementos à psiquiatria; de investigação colaborativa com pessoas vivendo com diagnósticos psiquiátricos; de denúncia do uso exclusivo e excessivo de medicação; ou de reivindicação de uma cidadania plena por quem é ainda tantas vezes relegado para um lugar de invisibilidade e de sub-humanidade. Não se trata de refazer teatralmente uma pose de antipsiquiatria de bons sentimentos, mas sem aderência à complexidade das situações concretas. Trata-se, antes, de afirmar a necessidade daquilo que chamo aqui o medicar paciente, tomando de empréstimo o título de um poema da escritora britânica Jay Griffiths: “Às vezes, um médico deve ser paciente consigo mesmo/ Suportando a frustração do desejo/ De actuar, intervir, injectar, prescrever/ Porque a descrição de um paciente pode ser mais curativa/ Do que a prescrição de um médico:/ Contar os detalhes que contam numa vida.” [Minha tradução do original inglês]

O poema surge no apêndice de um livro notável, Tristimania, que se apresenta como um “diário de depressão maníaca” (J. Griffiths, Tristimania. A diary of manic depression. Penguin, 2016). O compromisso da escritora, que vive com perturbação bipolar, com a busca da sua verdade emocional tem o poder de transformar a doença num instrumento de produção de um autoconhecimento valioso para outros. O poema termina assim: “Para a mente inquieta/ A escuta é outra forma de cuidados intensivos./Atrevo-me a dizer que seria mais fácil/ Internar um paciente que fala em suicídio./ Muito mais difícil é tomar o outro caminho/Para as raízes deste tipo de dor/ Não pela sedação do sofrimento/ Mas lentamente - pacientemente - na verdade/ Desfazendo o seu terrível domínio.”

Em diversos países, e actualmente também em Portugal, o Movimento Ouvir Vozes oferece um espaço de partilha de experiências e de escuta, portanto essa “outra forma de cuidados intensivos” própria do medicar paciente. Este movimento, já com mais de 30 anos de história, ao oferecer um espaço de sociabilidade liberto do estigma associado a esta e outras experiências incompreendidas, é inspirador de uma atitude necessária a uma sociedade mais inclusiva e de uma disponibilidade urgente nos cuidados de saúde mental.