Ler uma cidade a pé

Caminhar numa cidade como Lisboa é como ler um livro de que gosto, tem o que procuro na literatura. Não tem só qualidades, não é perfeita, nem aborrecida, tem defeitos, acentos graves sobre luzes e sombras, vírgulas e pedras que provocam quedas e tropeções, surpresas, rebuliços e quietudes.

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Rui Gaudêncio

Voltei aos passeios. Quando digo passeios, falo do nome e do verbo, do passeio enquanto espaço físico e do passeio enquanto movimento. Voltei a andar a pé e às ruas de Lisboa. Os confinamentos e o teletrabalho mudaram-me os hábitos, atiraram-me para casa, deixei de fazer caminhadas entre trabalhos e encontros, deixei de ver, de reparar, de anotar o quotidiano como dantes. As saudades que tinha de, apenas, ir daqui para ali. As saudades que tinha de um miradouro, de olhar para os telhados empilhados, sótãos a espreitarem para o rio, varandas empoleiradas, das casas desencontradas, das casas arranjadas, que saudades das ruas íngremes, dos becos estreitos, dos becos sem saída, dos pátios escondidos, dos recantos que se imagina em festa, mesmo que vazios, que saudades de andar a pé. Podia tê-lo feito durante esta pandemia dos confinamentos e dos mundos em conchas, mas não fiz.

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Voltei aos passeios. Quando digo passeios, falo do nome e do verbo, do passeio enquanto espaço físico e do passeio enquanto movimento. Voltei a andar a pé e às ruas de Lisboa. Os confinamentos e o teletrabalho mudaram-me os hábitos, atiraram-me para casa, deixei de fazer caminhadas entre trabalhos e encontros, deixei de ver, de reparar, de anotar o quotidiano como dantes. As saudades que tinha de, apenas, ir daqui para ali. As saudades que tinha de um miradouro, de olhar para os telhados empilhados, sótãos a espreitarem para o rio, varandas empoleiradas, das casas desencontradas, das casas arranjadas, que saudades das ruas íngremes, dos becos estreitos, dos becos sem saída, dos pátios escondidos, dos recantos que se imagina em festa, mesmo que vazios, que saudades de andar a pé. Podia tê-lo feito durante esta pandemia dos confinamentos e dos mundos em conchas, mas não fiz.

Começo agora a regressar, volto timidamente aos passeios, a andar a pé. Não por bosques e florestas, mas pela cidade. Casas, prédios, gente, mercearias, portas e janelas misturadas, geografias e cronologias. Antes de tudo mudar, podia caminhar horas sem me cansar. Não era, nunca foi, exercício físico, mas uma forma de leitura. Caminhar numa cidade como Lisboa (é aquela em que vivo, mas podia ser noutra, ou noutras, em algumas pelo menos) é como ler um livro de que gosto, tem o que procuro na literatura. Não tem só qualidades, não é perfeita, nem aborrecida, tem defeitos, acentos graves sobre luzes e sombras, vírgulas e pedras que provocam quedas e tropeções, surpresas, rebuliços e quietudes, pode até ter erro e transgressão na gramática, na sintaxe. Tem irritações e deslumbramentos. Tem fachadas que nos fazem voltar atrás, imaginar o interior. Tem bifurcações que desorientam, para aqui ou para ali, volto atrás na rua, volto atrás na página, não percebi bem, a inquietação cresce à medida que se lê e se anda. Algumas paisagens ficam para trás. Há outros retratos para os quais olho sempre que posso. Muitas vezes, caminho à sorte, não tenho a certeza de ter percebido o sentido, não uso mapas nem GPS.

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Daniel Rocha

A cidade tem vizinhos e estranhos, estou de pé a observar o rio, no miradouro fico com o olhar à altura dos telhados e dos sótãos, num estranho desequilíbrio de patamares, colinas e escalas. As vistas são largas e eu estou num largo. Uma cidade tem tantos tamanhos. Já me perdi em livros pequenos e encontrei rapidamente a saída em grandes. Uns são auto-estradas, construções novas, têm elevadores, outros são ruas escorregadias, prédios antigos de muitos andares, há que trepar e arfar, há soalhos gastos, humidades, tábuas que rangem. A cidade tem avenidas compridas, bairros, gente à janela, personagens, quem será aquele homem que vi? Estava com a cabeça de fora, a janela era rente ao chão. Como num livro, por vezes sinto que não serei capaz de subir aquela rua, é demasiado inclinada, já não consigo, se fosse mais nova. Nunca apanho o eléctrico, mas o vento dentro dele é fresco, a madeira é antiga. 

Azulejos desirmanados, flores em varandas, roupa a secar, uma cidade não pode estar fora do sítio e, no entanto, está. Como um livro: escrito ou desenhado e, no entanto, tantas vezes o que se lê não está escrito nem desenhado. Há mistérios em bosques e em cidades. Caras que nunca vou saber quem são no metro. Há poemas e livros que renascem. Nunca são os mesmos, renovam-se connosco. As caminhadas numa cidade também. Já passei por ali tantas vezes e nunca tinha reparado naquela placa, a dizer que naquela casa nasceu aquela pessoa. A roupa a secar naquela varanda muda todos os dias. Talvez até o rio que se avista dos miradouros, dos telhados e dos sótãos, mude. Eu não sou a mesma. Canso-me muito mais agora, só nunca de andar a pé.