O padrão de Belém: iconoclasma a preto e branco

Os monumentos e obras de arte, melhores ou piores que sejam, nunca podem considerar-se “de direita” ou “de esquerda”.

O criminoso modismo que aponta a dedo os monumentos e as obras de arte como corpos que tanto são passíveis de exaltação, como de destruição pura e simples consoante as ondulações da História, chama-se iconoclasma e é quase tão velho como a existência dos homens. Na verdade, sempre se exaltou (iconofilia), sempre se vandalizou (iconoclastia), e sempre existiram patrimonialistas impotentes face à sanha destruidora: mas terá de ser sempre assim num mundo que se deseja com princípios?

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O criminoso modismo que aponta a dedo os monumentos e as obras de arte como corpos que tanto são passíveis de exaltação, como de destruição pura e simples consoante as ondulações da História, chama-se iconoclasma e é quase tão velho como a existência dos homens. Na verdade, sempre se exaltou (iconofilia), sempre se vandalizou (iconoclastia), e sempre existiram patrimonialistas impotentes face à sanha destruidora: mas terá de ser sempre assim num mundo que se deseja com princípios?

 Sob pretexto de se destruírem «símbolos nefastos», em nome de pretensos valores positivos, o que se visa sempre é esconjurar ideias a partir da liquidação do corpo físico dos monumentos - algo que congrega as novas formas de assumir os velhos rituais de esconjuração da História e que constitui por isso, a meu ver, um verdadeiro e irreparável crime civilizacional. Ora os monumentos e obras de arte, melhores ou piores que sejam, nunca podem considerar-se “de direita” ou “de esquerda”, pois a sua submissão a este ou àquele ideário (político, religioso, simbólico) envolve sempre o plano contextual em que decorreu a sua produção, e não o palco vivencial da sua ulterior projecção pública, em que a sua maior ou menor capacidade estética é posta à prova.

 É importante ler, por isso, o texto de Maria João Marques chamado Os extremistas do passado a preto e branco saído no Público. Tal como a autora, confesso que também não me encanta sobremaneira um monumento como o Padrão dos Descobrimentos (1958-1960), erguido na Doca de Belém segundo uma “ideia de Leitão de Barros” de 1940 a que Cottinelli Telmo deu forma de projecto que só viria a ser concretizado em 1960 pelo arquitecto Pardal Monteiro e pelo escultor Leopoldo de Almeida no âmbito das Comemorações do 5.º Centenário da Morte do Infante D. Henrique.

Erguido provisoriamente com arquitectura em estrutura de ferro e cimento e com as escultura em estafe, por ocasião da Exposição do Mundo Português (1940), o Padrão seria erguido na sua forma definitiva em 1958-1960 em betão revestida de pedra rosal de Leiria, tendo tido inauguração oficial a 9 de Agosto de 1960. O regime salazarista encontrava neste cânone representativo a legitimação da sua ideologia totalitária e obscurantista. Eu tinha oito anos de idade e lembro-me de reagir ao impacto cenográfico do monumento com um misto de surpresa e desconforto: de facto, ele fora concebido e realizado para reflectir o que o Estado Novo entendia dever ser a grandiloquência da arte pública ao serviço de uma ideia de império ultramarino.

O Padrão dos Descobrimentos é pois, ideologicamente, um símbolo de um tempo histórico preciso, que significa opressão e cinza. Mas seria essa razão suficiente para se poder advogar a sua desmontagem, se não mesmo a sua destruição? Não é certo que ele exprime um cânone estilístico, corporiza o gosto e a ideologia de um certo tempo da nossa História e, mais, faz parte integrante da Paisagem Cultural de Belém, a mesma que a UNESCO classificou de Património da Humanidade? Uma das riquezas do Património cultural é justamente a sua diversidade – o seu direito à diversidade.

Em suma: a imagem simbólica de Belém é enriquecida com um acervo de mais-valias de que o Padrão faz parte. Significa isso que não se discuta a História e não se contestem os sentidos precisos que lhes deram forma? É óbvio que não (sendo essa, aliás, uma das tarefas da História da Arte). Mas essa contestação não é compaginável com destruições de monumentos, esculturas e demais obras de arte que fazem parte integrante da nossa paisagem cultural colectiva.

 Como tenho repetido à exaustão, os monumentos são sempre muito mais do que a sua iconografia, muito mais do que o seu tema, muito mais do que o seu contexto primevo. À sombra desse raciocínio boçal, ainda veremos alguém defender a retirada dos Painéis de São Vicente da sua sala no MNAA por elogiarem a saga das conquistas militares no Maghreb !!!