Bom senso sobre os brasões florais da Praça do Império

Como autora do projeto de renovação do Jardim da Praça do Império, e por todo o significado que a Praça tem para todos nós, sugiro que os brasões florais passem agora a brasões em calçada à portuguesa.

1. Como diria o nosso Presidente, quando era comentador, três notas: desta vez sobre os brasões florais da Praça do Império, as quais me levarão a um post scriptum

Place attachment, jardinagem avançada, restauro de jardins históricos, e a Carta de Florença que contém a solução pacífica para os símbolos que a Praça do Império encerra, são os três temas a desenvolver e, como nota final, tantas outras coisas da nossa cidade para as quais se deveria mobilizar a população e que estão adormecidas.

O fenómeno de uma movimentação dinâmica em redor de um tema de jardins, de flores e de espaço público a que assistimos merece uma análise atenta à luz das teorias da Arquitetura Paisagista e da Psicologia Ambiental.

Há muito que me interessa o tema do apego ou ligação ao lugar (place attachment) que muitas vezes se expressa nos jardins, quando o seu dono quer celebrar uma paisagem onde viveu, onde foi feliz ou quando um emigrante volta e constrói uma casa e um jardim e nele coloca os símbolos ou mesmo as peças que trouxe de longe.

O mais bonito caso, e o mais antigo, é o da Quinta da Penha Verde, em Sintra, onde D. João de Castro deixou expressa a sua ida e vivência na Índia. Trouxe pedras escritas em sânscrito que ainda hoje se encontram no jardim, construiu uma capela onde registou a história da sua vida em Goa, Diu e Baçaim. Inscreveu no espaço do jardim a sua saudade e a sua pertença. Muitos outros jardins em Portugal revelam esta ligação de saudade emocional ao lugar, como a Casa da Ínsua com o Brasil, ou a Quinta da Bacalhoa com Goa, Malaca e Ormuz.

Foi algo idêntico que fizeram os jardineiros, que nos anos 60 decidiram celebrar na Praça do Império cidades e territórios, expressando a ligação de saudade e pertença trazidos de além-mar.

O fenómeno da assinatura da petição, tão rápido e tão numeroso, pela defesa dos símbolos de um jardim em Lisboa merece também ser analisado pela sua profunda expressão de ligação ao Lugar. Um estudo por inquérito aos peticionários permitiria levantar o tema do significado e da história dos lugares representados pelos brasões na mente dos peticionários – muito variados, devendo incluir veteranos da guerra colonial e os que de lá voltaram no pós 25 de Abril.

Independentemente dos resultados de um estudo sobre esta pertença e esta saudade, torna-se obrigatório respeitar esta efusão comunitária e dar uma resposta física no espaço do jardim em restauro, através do projeto que o atelier ACB – Arquitetura Paisagista, que fundei, assina após ter sido declarado vencedor do concurso de ideias por um júri qualificado e independente em 2016.

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2. Após a primeira nota, vamos à segunda, que parece nada ter a ver com a primeira, mas ambas se juntarão quando abordarmos a terceira. Falo da ciência e arte da jardinagem.

A jardinagem em Portugal tem vindo a perder sabedoria e os parques e jardins, tanto públicos como privados, foram-se simplificando e usando cada vez menos flores. O modernismo e os seus traços limpos (como queria o Cottinelli Telmo, autor do projeto da Praça do Império) retirou, na maioria dos jardins públicos, os canteiros de flores, os complicados arranjos de mosaico-cultura que visavam uma permanente exposição de cor e obrigavam a uma troca de plantas nos canteiros de três em três meses, exigindo uma rica e constante produção de flores em viveiro, também feita pelos sábios jardineiros.

Em Lisboa, como alunos de Arquitetura Paisagista, em visita de estudo a estes centros de saber hortícola, fascinávamo-nos com o que nos ensinavam o Sr. Guilhas ou o Sr. Argentino no Jardim Botânico da Ajuda. Todo esse mundo de ornamento floral desapareceu por se terem reformado os antigos jardineiros, por exigir muita mão de obra, por os decisores políticos terem preferido comprar fora fazendo-o por outsourcing.

Deixámos de ter os sábios jardineiros que tratavam (e amavam) o nosso espaço público e a mosaico-cultura já não é, por isso, viável em Lisboa. Dizem-me que em Braga ainda lá estão e que a UTAD vai lançar um curso de Jardinagem Avançada para preservar os saberes. Em Lisboa não se fala nisso, mas era isso mesmo que seria preciso para se manterem os ditos brasões em mosaico-cultura da Praça do Império e para dar mais beleza aos nossos jardins.

Não chegam, no entanto, os 24.000 € que o sr. presidente da Junta de Belém disponibiliza para repor os brasões. Realmente, uma vez plantados com os moldes em madeira e o cuidado que cada cor nos brasões exigisse, eles precisariam de um apoio dos viveiros em continuidade, todo o ano, todos os anos. Uma operação de preparação de jardineiros e saberes demora dois anos com um sólido curso de jardinagem promovido pela Universidade de Lisboa... tema sem dúvida a pensar, através de uma parceria com a CML e, porque não, com outras autarquias da Área Metropolitana de Lisboa.

Com esse investimento estratégico no saber e na produção de plantas para os espaços públicos, poder-se-ia então tornar possível replantar os brasões florais das comunidades do Império, recriados em redor dos brasões de pedra que lá existem como símbolos das famílias dos nossos navegadores.

3. A terceira nota leva-nos ao mundo internacional dos jardins históricos e do seu restauro. Esta matéria tem regras. A Unesco formulou em 1981 a Carta de Florença para as consignar em defesa dos jardins históricos como monumentos. Tivemos no verão passado, como nunca, uma intensa exposição ao conhecimento dos jardins históricos através da RTP1, que transmitiu durante 15 dias programas ininterruptos que nos levaram aos jardins históricos de todo o Portugal. Bem haja a RTP1!

Os nossos especialistas já inventariaram cerca de 800 espaços ajardinados com história e distribuídos por Portugal continental e ilhas, podendo-se consultar em www.jardinshistoricos.pt. São jardins com história que encerram a memória de uma cultura e são verdadeiro património vivo. Não se pode deixar de agradecer à Prof. Teresa Andresen, como presidente da Associação de Jardins Históricos (fundada por mim e por outros paisagistas defensores de jardins em 2003), o esforço e o sucesso na divulgação deste património nacional. E deve ser reconhecido também que sem o estímulo do sr. vereador Sá Fernandes esse programa na televisão e a Exposição de Jardins Históricos que ainda está na Biblioteca Nacional (vão ver, mal reabra) não teria acontecido.

No projeto de restauro da Praça do Império, o ACB, em 2016, retirou os brasões seguindo os princípio do Artigo 17.º da Carta de Florença, que enuncia: “Se um jardim desapareceu totalmente ou se os vestígios que restam servem apenas para traçar conjecturas sobre as suas sucessivas fases, a reconstituição não deve ser considerada um jardim histórico.” E também escrevemos na Memória Descritiva que estes brasões florais estavam irrecuperáveis.

Voltemos ao tema dos viveiros e dos jardineiros especializados. Face ao significado que estes símbolos parecem dinamizar na memória da comunidade de Lisboa, relembro os termos de Carmen Añon, perita da Unesco-Icomos e responsável, com outros grandes paisagistas europeus dos anos 70, pela criação da Carta de Florença, que referem a possibilidade de respeitar os aportes. Os aportes dos jardineiros que juntaram à modernista Praça do Império estes símbolos de saudade e pertença das cidades espalhadas pelos países de língua portuguesa podem ser repensados à luz do século XXI e podem ser reintegrados no espaço.

Se voltarmos a Cottinelli Telmo e à Memória que escreveu para este jardim, encontramos a solução: refazer os brasões em calçada à portuguesa. Isso não irá contra o que escrevi no projeto em 2016: “Parece ser, igualmente, um momento em que celebrar a memória de Cottinelli Telmo – a sua criatividade, energia, capacidade de trabalho é pertinente e útil e pode ser feito tomando a oportunidade para a maior aproximação possível ao conceito original de 1940, que tem de ‘ser de grande simplicidade, ter inteireza' (...), ‘grandes relvados, zonas de lajedo e de empedrado à portuguesa’ (...) e realisticamente de ‘conservação pouco dispendiosa’. Por isso, e por todo o significado que a Praça tem para todos nós, sugiro que os brasões florais passem agora a brasões em calçada à portuguesa.

Quanto ao património floral que compõe a forma, mas não o conteúdo, dos brasões florais escrevi no Estudo Prévio do projeto que “está prevista a remoção dos brasões em pranchas, retirando-se uma camada de terra em palettes, aproveitando as plantas que os formam e transpondo-os para outros jardim que a CML irá indicar”. Por vezes, uma simples operação de transplante é a melhor forma de respeito pelas plantas e pelo seu significado.

4. A nota final é apenas para recordar e pedir a mobilização dos peticionários e de todos os cidadãos de Lisboa, para outras temáticas de Arquitetura Paisagista e Ecologia Urbana que mereceriam ser melhoradas. Por exemplo:

  • O Plano de Drenagem de Lisboa está a avançar sem armazenar a água da chuva em bacias de retenção – para a rega de verão. Despeja-a inutilmente no Tejo; 
  • A rega da cidade de Lisboa feita com água tratada que vem do Castelo do Bode, como se fossemos ricos esbanjadores;
  • A estrutura tão preciosa de árvores de Lisboa, que devia ser acompanhada por um grupo permanente de especialistas da câmara e não estar entregue a cada junta de freguesia, que não tem a possibilidade financeira nem a dimensão para assegurar a continuidade e o saber em silvicultura, de tratar devidamente estas nossas companheiras de cidade que a tornam tão mais confortável e bonita;
  • Finalmente, não deixar de reagir à construção de hotéis, hospitais e museus junto à linha de frente Tejo, quando todos sabemos que daqui a 50 anos essas áreas, correspondentes basicamente ao aterro oitocentistas de Lisboa, serão invadidas pela subida do nível dos oceanos e serão inundadas pelas águas do estuário.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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