Idosos: negligenciados por alguns, acolhidos por outros

Aqui, em Portugal, a comunidade pulverizou-se e só resta o indivíduo no seu singular. Agora a luta dos idosos e idosas é contra um invasor e um ostracismo.

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Rui Gaudencio

Às vezes, durante caminhadas independentes e higiénicas pelo bairro, vejo muitos idosos e idosas. Entre muitos sentimentos, surge a nostalgia — não a saudade — do meu avô e da minha avó. A diferença crucial entre os sentimentos está na ausência ou na presença de dor.

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Às vezes, durante caminhadas independentes e higiénicas pelo bairro, vejo muitos idosos e idosas. Entre muitos sentimentos, surge a nostalgia — não a saudade — do meu avô e da minha avó. A diferença crucial entre os sentimentos está na ausência ou na presença de dor.

Lembro-me que no início da pandemia, após a divulgação de dados acerca da prevalência de mortes, algo que para muitos jovens foi motivo de comemoração, o sentimento aumentou. Hoje, num país com uma elevada população de idosos e idosas, em que os óbitos crescem, pergunto-me acerca dos pensamentos que circundam cada idoso e idosa que vejo nas ruas.

O mais simbólico desses contactos visuais efémeros acaba por ser que, na grande maioria, encontram-se sozinhos e sozinhas; a sociedade esqueceu a comunidade. O crucial é que a situação não acaba aqui. O vírus, um ser vivo ou morto, é considerado uma espécie de barbaridade por muitos. Um agente que mata sem discriminação, algo que em nosso âmago sabemos ser uma falácia. Afinal nunca estivemos no mesmo barco; alguns estavam na costa.

Pior que tal barbarismo são as barbaridades com uma cara humana, entre elas está o abandono que idosos e idosas sofrem. Pouco importa a felicidade — ou, como os economistas chamam, a utilidade — deles e delas. Não é motivo de surpresa que a taxa de perturbações de humor seja significativa nesse grupo etário. Andrew Solomon, autor de livros como Longe da Árvore e O Demónio da Depressão, fala-nos das suas experiências pessoais com a depressão.

Na sua busca por tratamentos alternativos à “doença da alma”, descreve a sua conversa com um homem que trabalhou no hospital psiquiátrico de Kigali, em Ruanda, que declarou ter tido problemas com profissionais estrangeiros de saúde mental, principalmente com aqueles que estiveram lá logo após o genocídio. Dizia: “(…) Eles não identificavam a doença como uma coisa externa, invasiva. Não chamavam a aldeia inteira para reunir e reconhecer a doença, para participar tentando apoiar a pessoa que estava sendo tratada. O tratamento não era do lado de fora, na claridade do dia, onde você se sente feliz. Não havia música nem tambores para acelerar o coração, como o coração precisa ser acelerado. Em vez disso, levavam as pessoas, uma de cada vez, para dentro de cubículos sórdidos durante uma hora e pediam que elas falassem das coisas ruins que tinham acontecido (…).”

O processo aqui funciona praticamente da mesma maneira. A população idosa é levada ao espaço pequeno e sombrio. Porém, existem duas diferenças fundamentais: o espaço não é a clínica psicoterapêutica, mas as suas próprias casas, e não há diálogo para contarem as coisas ruins. Existe apenas um monólogo entre si e a sua narrativa construída. O mesmo monólogo que muitas pessoas passam suas vidas tentando evitar.

Aqui, em Portugal, a comunidade pulverizou-se e só resta o indivíduo no seu singular. Agora a luta dos idosos e idosas é contra um invasor e um ostracismo. O vencedor é uma resposta dada pelo tempo, aquilo que temos de mais precioso, mas sabemos que o tempo é escasso neste momento da vida. Talvez o ideal não seja esperar pela resposta. Talvez o ideal seja participar na construção dela e evitar um suicídio crónico-colectivo mascarado de irracional ou impulsivo.