O que falta para mudar o acolhimento de crianças e jovens em Portugal?

Na esmagadora maioria das vezes, quando uma criança é sinalizada como estando em risco as medidas de intervenção em meio natural de vida são suficientes para resolver ou afastar a situação que originou a denúncia ou queixa.

A lei de proteção de crianças e jovens em perigo (LPCJP), de acordo com a redação dada pela Lei nº 142 /2015, de 8 de Setembro, tem por objeto a promoção dos direitos e a proteção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral. É considerada uma Lei progressista, dado que respeita os princípios consagrados na Convenção Sobre os Direitos das Crianças e que procurou incorporar a visão que a ciência tem vindo a trazer a esta área. Esta lei prioriza a manutenção da criança no seu contexto familiar, atendendo ao seu superior interesse, sempre que esta não se encontre em risco ou perigo.

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A lei de proteção de crianças e jovens em perigo (LPCJP), de acordo com a redação dada pela Lei nº 142 /2015, de 8 de Setembro, tem por objeto a promoção dos direitos e a proteção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral. É considerada uma Lei progressista, dado que respeita os princípios consagrados na Convenção Sobre os Direitos das Crianças e que procurou incorporar a visão que a ciência tem vindo a trazer a esta área. Esta lei prioriza a manutenção da criança no seu contexto familiar, atendendo ao seu superior interesse, sempre que esta não se encontre em risco ou perigo.

Na esmagadora maioria das vezes, quando uma criança é sinalizada como estando em risco as medidas de intervenção em meio natural de vida são suficientes para resolver ou afastar a situação que originou a denúncia ou queixa. De acordo com o Relatório Anual de Avaliação das Atividades das CPCJ, em 2019 mais de 90% das medidas de promoção e proteção decretadas por estas entidades foram aplicadas em meio natural de vida. No entanto, há circunstâncias em que o melhor para a criança é ser retirada à sua família de origem. Este afastamento deve ser, sempre que possível, apenas temporário e corresponder somente ao tempo necessário para resolver as questões que estiveram na origem do perigo detetado, removendo-o, e para permitir à criança a sua recuperação.

Quando é considerada necessária a retirada da criança do seu contexto familiar, esta fica à guarda do Estado e é colocada em acolhimento familiar (numa família selecionada para esse efeito) ou em acolhimento residencial (numa casa de acolhimento). Apesar da LPCJP privilegiar explicitamente o acolhimento familiar, em especial no caso das crianças com menos de 6 anos, hoje em dia, no nosso país, a esmagadora maioria das crianças, mais de 97% de acordo com o último Relatório CASA, se for retirada à sua família vai para uma instituição.

O caso português é considerado por peritos internacionais como uma anomalia, dado que na maioria dos países desenvolvidos o panorama das medidas de colocação nos respetivos sistemas de proteção infantil é totalmente inverso, com o acolhimento familiar a ser a medida preponderante.

Veja-se o caso da Irlanda, um país com um sistema de proteção similar ao português e que no início da década de 80 tinha uma situação em tudo idêntica à nossa e onde, atualmente, mais de 91% das crianças retiradas estão em acolhimento familiar (Foster Care) ou em acolhimento junto da sua família alargada (Kinship Care), tendo apenas 7% em acolhimento residencial.

Em Portugal, esta entrada de um número tão elevado de crianças em casas de acolhimento acontece apesar de inúmeros estudos internacionais alertarem para os possíveis efeitos negativos que a institucionalização pode ter nestas crianças, gerando défices cognitivos e problemas emocionais muitas vezes irreversíveis. Vários cientistas consideram, por isso, que o acolhimento de cariz institucional pode ser visto como maltrato, especialmente no que aos bebés e às crianças mais pequenas diz respeito. Ainda que a qualidade do acolhimento e a relação com os cuidadores sejam variáveis que de acordo com outros autores marcam alguma diferença, a perspetiva da ciência é clara: o acolhimento residencial não substitui uma família. Sendo assim, porque é que no nosso país continuamos cegos, surdos e mudos e permitimos que este estado de coisas continue? Como pudemos continuar a compactuar com esta situação?

Agora que finalmente saiu a Portaria n.º 278-A/2020 que define os termos, condições e procedimentos do processo de candidatura, seleção, formação e avaliação das famílias de acolhimento, bem como o respetivo reconhecimento, de que mais estamos à espera para fazer esta transição?

Muitos responderão que aguardamos as condições para a sua implementação, a criação das entidades enquadradoras e o início do processo de candidatura, seleção, formação e avaliação das famílias de acolhimento; e estão certos. Outros dirão que falta a correspondente Portaria para o Acolhimento Residencial, o que é verdade, atendendo a que as casas de acolhimento têm que conhecer quais são aquelas que serão capazes de cumprir as exigências da referida Portaria e quais terão que se reconverter (nomeadamente em entidades enquadradoras do acolhimento familiar) ou fechar. Se assim é, porque continuamos à espera há mais de 1 ano por esta Portaria, depois de termos esperado 4 anos pela regulamentação?  Enquanto esperamos: as instalações de muitas casas de acolhimento degradam-se, a maioria dos jovens continuam a viver em casas segregadas em função do género separados de irmãos e irmãs, a supervisão externa continua voluntária, continua a haver casas com muito mais de 15 crianças, os acordos de cooperação não podem ser revistos, não existe uma avaliação independente da qualidade do acolhimento proporcionado, e o financiamento continua a ser em função do número de crianças acolhidas, beneficiando as casas maiores... Casas de acolhimento que há muito deviam estar fechadas continuam abertas e a receber crianças.

Falta, também, coragem para reconhecer que o bem-estar destas crianças e o seu superior interesse tem que prevalecer sobre a conveniência de quem está dependente destas instituições. Falta envolver os cuidadores das casas de acolhimento neste processo de transformação, como aconteceu noutros países em que os cuidadores foram o motor da mudança, reconvertendo-se os técnicos para o apoio ao acolhimento familiar e os educadores, sempre que possível, constituíram-se como famílias de acolhimento. Todos podem ficar a ganhar. Até as direções das casas de acolhimento que ao optarem por promover a transformação da “sua” casa de acolhimento em entidade enquadradora do acolhimento familiar podem verdadeiramente afirmar perante a sociedade estar a fazer o melhor a bem destas crianças.

Falta muito mais do que qualquer uma destas coisas: falta vontade política para mudar um sistema que pode servir muita gente mas não serve, certamente, estas crianças.