Cisjordânia: crónica fotográfica de uma “normalidade absurda”

A Hora de Luz na Prisão, do fotógrafo José Farinha, descreve a “normalidade absurda” a que estão sujeitos os palestinianos que convivem diariamente com violência física e psicológica inerente à ocupação israelita. Nas imagens não há sangue, nem revolta ou turbulência. Há, sim, o retrato de homens, mulheres e crianças palestinianas que conseguem suspender psicologicamente a ocupação para dar seguimento às suas vidas.

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Entrega de bandeiras da Palestina no evento de celebração da libertação de prisão da Ahed Tamimi, na aldeia de Nabi Saleh, de onde é natural. Nabi Saleh, Palestina, 2018 ©José Farinha

No dia 29 de Julho de 2018, após o cumprimento de oito meses de pena numa prisão israelita, Ahed Tamimi, de 17 anos, foi libertada. Tamimi cometeu o crime de esbofetear um soldado israelita, que usava equipamento de protecção e estava armado com uma metralhadora. No dia em que esta activista regressou a casa esperava-a uma grande festa de boas-vindas, que seria acompanhada por jornalistas dos principais meios de comunicação social mundiais. Nesse domingo, o fotógrafo José Farinha estava em Ramallah, a cerca de 15 quilómetros da aldeia natal de Tamimi, Nabi Saleh. Mas quando se apercebeu do que estava a acontecer, já era demasiado tarde, não tinha forma de deslocar-se até ao local.

Às 10 da manhã do dia seguinte, o fotógrafo português já caminhava por entre o pó da estrada principal de Nabi Saleh. Não se via ninguém. A aldeia estava adormecida, na ressaca da festa que se havia prolongado noite dentro. Tamimi vivia na última casa e foi o seu pai quem abriu a porta ao fotógrafo. “Ouvi dizer que a sua filha foi libertada. Vim para lhe dar um abraço e força para resistir.” O homem convidou-o para entrar. Lá dentro estavam umas amigas da rapariga, que a esperavam com um bolo caseiro, e uma jornalista da agência Reuters, que tinha com ela agendada uma entrevista. “Eu sou fotógrafo, mas não trabalho para ninguém”, explicou José Farinha ao patriarca. “Sou independente”, acrescenta. “Queres cá ficar?”, perguntou-lhe o anfitrião. Aquilo que Farinha registou, ao longo das muitas horas que passou na companhia de Tamimi, foi um retrato de intimidade. “Nesta fotografia, ela vê pela primeira vez o sobrinho, que nasceu enquanto estava presa.”

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©José Farinha

Esta é uma das muitas peripécias que Farinha viveu entre 2017 e 2019, na Cisjordânia, junto de cidadãos anónimos — e alguns não tão anónimos. A série fotográfica que desenvolveu ao longo de cerca de 70 dias, que intitulou de A Hora de Luz na Prisão em alusão ao poema Palestina, de Mahmoud Darwish (1941-2008), faz um retrato da “normalidade absurda” a que estão sujeitos os palestinianos que convivem diariamente com violência física e psicológica inerente à ocupação israelita. Nas imagens não vemos palestinianos a arremessar cocktails Molotov, em manifestações; não há sangue, nem revolta ou turbulência. Há, sim, o retrato de homens, mulheres e crianças palestinianas que conseguem suspender psicologicamente a ocupação para dar seguimento às suas vidas. “O mero funcionamento, sob estas condicionantes, é uma forma de poder, de resistência”, diz o fotógrafo ao P2. “Retratar os palestinianos como pessoas comuns é a única forma de desconstruir a narrativa israelita, que insiste em fabricar e difundir a imagem de um inimigo terrorista, fundamentalista.”

Durante as visitas às várias cidades e aldeias da Cisjordânia, Farinha deparou-se com a constante presença armada e intimidatória de militares israelitas. “Experienciei, por alguns dias, aquilo que os palestinianos experienciam toda a vida. Passei pelos checkpoints, pelo mesmo tipo de agressão verbal e psicológica que eles sofrem.” Além das conhecidas limitações à circulação impostas militarmente pelo governo de Israel à circulação de palestinianos dentro da Palestina, existe também controlo israelita sobre os fornecimentos de água, de electricidade e de Internet. E também, em parte, sobre o emprego. “Israel tem a Palestina ocupada, mas precisa, ao mesmo tempo, de mão-de-obra barata”, refere Farinha. “Concede, por isso, a alguns palestinianos desesperados autorização para trabalhar em Israel. Ocupam o território palestiniano e, ao mesmo tempo, usam a sua força de trabalho para, por exemplo, construir ou limpar as suas casas.” Algo que o fotógrafo considera “moral e psicologicamente violento”, tendo em conta o contexto.

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Mulher cruza o maior posto de controlo que existe entre Ramalah e Jerusalém vestindo um casaco que tem estampado nas costas “Not normal” (Não é normal). Ramalah, Palestina, 2018 ©José Farinha

A resistência cultural, identitária, é algo que preocupa profundamente os palestinianos, refere o fotógrafo. “Com o passar dos anos, as novas gerações ficam cada vez mais distantes do passado, das raízes da identidade palestiniana. A Internet, o telemóvel, as novas tecnologias também contribuem para esse afastamento. Eles têm noção de que a resistência à ocupação está muito ligada à memória, à identidade e sabem que têm de ser criativos para a preservarem.” Os grupos de teatro, de dança são muito apoiados pela população por esse motivo, observa.

O trabalho fotográfico de Farinha é um reflexo das suas convicções políticas e sociais, que assume abertamente. “Não quero relativizar o conflito israelo-palestiniano. Não quis, nem quero expor os dois lados — quero relevar as dificuldades e expor as violações de direitos humanos de que são vítimas os palestinianos no conflito que decorre há 70 anos.”