Recolher obrigatório em Portugal? Talvez, desde que devidamente justificado

Quando se fala cada vez mais na possibilidade de Portugal regressar ao estado de emergência, abre-se também a possibilidade de o país ter recolher obrigatório, à semelhança do que já foi decretado em França ou na Bélgica. Medida não é rejeitada por vários especialistas, embora suscite dúvidas.

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Noites vazias de gente, será essa a realidade de um eventual recolher obrigatório no país paulo pimenta

Em França já está em vigor, na Bélgica arranca na segunda-feira e por cá também já se fala nessa possibilidade: o recolher obrigatório, uma medida geralmente associada a situações de conflito, pode ser o próximo passo na tentativa de travar o aumento de casos de covid-19, que se tem registado nas últimas semanas e que se teme que esteja ainda muito longe do pico máximo. E o recolher obrigatório pode ser aplicado para uma situação de pandemia? Os constitucionalistas dividem-se, mas numa coisa, entre os vários especialistas ouvidos pelo PÚBLICO, parece haver consenso: há que haver uma justificação clara para avançar por aí.

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Em França já está em vigor, na Bélgica arranca na segunda-feira e por cá também já se fala nessa possibilidade: o recolher obrigatório, uma medida geralmente associada a situações de conflito, pode ser o próximo passo na tentativa de travar o aumento de casos de covid-19, que se tem registado nas últimas semanas e que se teme que esteja ainda muito longe do pico máximo. E o recolher obrigatório pode ser aplicado para uma situação de pandemia? Os constitucionalistas dividem-se, mas numa coisa, entre os vários especialistas ouvidos pelo PÚBLICO, parece haver consenso: há que haver uma justificação clara para avançar por aí.

“A questão central é que temos de perceber por que é que as medidas são tomadas e, se soubermos que um número importante de contágios está a acontecer em contexto pós-laboral, em reuniões em casa das pessoas, em bares, então o recolher obrigatório faz sentido. Mas só nesse caso e eu não sei, porque não foi divulgado, se as cadeias de transmissão estão a ocorrer sobretudo nesses casos.” O resumo é do presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, Ricardo Mexia, que, logo a seguir, lamenta que o combate à pandemia surja muito ligado à imposição de restrições. “Eu espero que medidas como esta sejam baseadas em evidências, mas, ainda assim, era importante que as medidas não sejam só do lado das restrições aos direitos dos cidadãos e que incidam mais na capacidade de resposta dos serviços de saúde”, diz.

Carla Nunes, directora da Escola Nacional de Saúde Pública, diz que não é ainda possível antever se uma situação em que as pessoas possam manter a actividade diurna normal (ir à escola e trabalhar, fazer exercício físico ou ir às compras), mas ficarem proibidas de sair de casa durante um período nocturno a definir, pode ser eficaz na tentativa de travar a transmissão do coronavírus SARS-CoV-2. “É tudo muito recente e qualquer alteração de comportamento demora duas a três semanas a ter impacto. Só a partir daí é que se percebe se começa a ter efeitos ou não nos números. Além disso, nenhuma medida tem sido tomada isoladamente, os países têm proposto várias em simultâneo”, diz.

E, neste contexto, é difícil avaliar o impacto real de uma acção concreta, explica: “Nos estudos clínicos só fazemos uma alteração de cada vez. É como quando tentamos perceber se um bebé é alérgico a algum alimento e só vamos acrescentando um de cada vez à sua dieta. Aqui mexemos em várias coisas ao mesmo tempo, o que torna mais complicada a avaliação” do impacto de cada medida.

Do lado dos constitucionalistas, a opinião divide-se sobre se o recolher obrigatório pode ser decretado para uma situação de pandemia e, se sim, em que condições terá de ser feito. Jorge Reis Novais é o mais crítico e a sua avaliação não poupa Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa. “O problema é que tanto o Presidente da República como o primeiro-ministro não têm muita sensibilidade para o cumprimento de regras jurídicas, o que é estranho, porque são ambos juristas. Mas isso não os atrapalha muito. Se o Presidente da República quer mais protagonismo, decreta o estado de emergência, se acha que deve ser o Governo a ter mais protagonismo, este declara a situação de calamidade. Mas isto não devia ser assim”, defende.

Para o professor de Direito Constitucional da Universidade de Lisboa, o país tem recorrido à Lei de Bases da Protecção Civil “para uma situação que não é adequada”, já que uma pandemia não tem o carácter de catástrofe ou acidente grave – algo muito contido no tempo –, que pode levar a decretar-se um estado de alerta ou de emergência. “O que temos é uma emergência de saúde pública, mas a Lei de Bases da Saúde (LBS) e o Sistema de Vigilância de Saúde Pública (SVSP) não prevêem uma situação destas”, refere. “Há um vazio legislativo que devia ser preenchido e já houve oito meses para o fazer. Deveria haver uma alteração [da LBS e SVSP] que permitisse que, em situações gravíssimas como a que atravessamos, pudesse haver limitações de direitos fundamentais, sempre por acto legislativo, seja lei ou decreto-lei”, defende.

Com ou sem estado de emergência

A possibilidade de Portugal poder vir a ter de conviver com uma situação de recolher obrigatório é vista pelo constitucionalista nesta mesma perspectiva – é possível avançar com a medida, mesmo sem que seja decretado o estado de emergência, mas, insiste Reis Novais, “recorrendo a leis que não são adequadas à situação”.

Tiago Duarte, professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, também defende que não é necessário que seja de novo declarado o estado de emergência – uma possibilidade que já foi admitida pelo Presidente da República e que estará a ser discutida há já algum tempo com o Governo – para que se avance com um recolher obrigatório, mas recorda que uma medida deste género terá sempre de ser justificada e proporcional à privação de um direito fundamental. “Todas as leis que venham a ser aprovadas e que restrinjam os direitos fundamentais dos cidadãos – neste caso, o de a pessoa poder circular livremente – só serão conformes com a Constituição, desde logo, se forem necessárias para salvaguardar outro direito fundamental, que será o direito à saúde”, diz.

O constitucionalista realça que é essencial que medidas deste género sejam “proporcionais e não excessivas”, pelo que um recolher obrigatório só terá justificação se “se chegar à conclusão que os grandes focos de contágio acontecem à noite”.

Já Rui Pereira, jurista e antigo ministro da Administração Interna, tem uma perspectiva diferente sob a eventualidade de se avançar para um recolher obrigatório: “Uma medida dessas só é possível se estivermos em estado de sítio ou em estado de emergência. A suspensão de liberdade de circulação que está associada ao recolher obrigatório é completamente inconstitucional fora desse contexto”, defende. 

Mas isso, para o antigo governante socialista, não será um impedimento, caso se decida avançar por aí, e explica porquê: “Não tenho grandes dúvidas que nesta altura o Presidente da República e o primeiro-ministro já estão a pensar nessa possibilidade”, diz.

Para já, o recolher obrigatório por causa da covid-19 foi decretado em França, onde, durante quatro semanas, é proibido andar na rua, sem motivo de força maior, em nove cidades (incluindo Paris) entre as 21h e as 6h, e na Bélgica, onde os cidadãos serão impedidos de andar na rua entre a meia-noite e as 5h a partir da próxima segunda-feira.