Não há bons “bairros sociais” (nem com vistas, nem sem elas)

A questão é que as periferias que importam não são as geográficas, são as sociais: as que segregam, rotulam e se reproduzem geracionalmente e que, por isso, criam identidades: a identidade do “bairro social”.

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rui gaudêncio

Os bairros que, comummente, designamos por sociais, são, em Portugal, como por toda a Europa dita ocidental, o resultado da pobreza e da exclusão social, que nas últimas quatro décadas do século XX se avolumava, ombreando com uma classe média igualmente crescente e fascinada com o manancial de oportunidades, suscitado por uma sociedade de consumo que se pretendia cada vez mais massificada.

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Os bairros que, comummente, designamos por sociais, são, em Portugal, como por toda a Europa dita ocidental, o resultado da pobreza e da exclusão social, que nas últimas quatro décadas do século XX se avolumava, ombreando com uma classe média igualmente crescente e fascinada com o manancial de oportunidades, suscitado por uma sociedade de consumo que se pretendia cada vez mais massificada.

Neste mundo que surgiu no pós-II Guerra Mundial e na lógica de uma nova responsabilização dos Estados relativamente à protecção social e ao bem-estar dos cidadãos, o combate à pobreza ganhou relevância e, neste combate, o problema da habitação, ou da sua carência ou falta de condições, tornou-se prioritário.

E tornou-se prioritário por duas razões: a primeira, porque, de facto, o direito a uma habitação condigna está universalmente consagrado e a ausência da mesma é um dos mais visíveis sinais da pobreza. E isso leva-nos à segunda razão (menos nobre e mais pragmática) pela qual se envidaram esforços para encontrar soluções de habitação para os mais pobres: tornar menos flagrante a sua pobreza.

Porque muitas cidades europeias, e Lisboa era um exemplo disso nas décadas de 70 e 80, estavam rodeadas de bairros clandestinos, de barracas, barracões, contentores ou casas de tijolo, que se alargavam à medida do número, também crescente, daqueles que tinham de acolher.

E acolhiam os que tentavam escapar à miséria dos campos e das aldeias, na miragem do emprego nas obras, ou nas fábricas. Chegavam primeiro os homens, que por não receberem o suficiente para arrendar uma casa ou parte de casa, ocupavam, construindo barracões, os terrenos baldios que circundavam as cidades. Depois juntavam-se-lhes as mulheres e esses barracões iam ganhando forma de casa, com cortinados e naperons e divisões acrescentadas, à medida do dinheiro disponível e dos filhos que nasciam.

Mas acolhiam também, estes bairros, além destes migrantes internos, imigrantes de outras paragens, geralmente dos países recém-descolonizados, que em igual procura de melhor vida se instalavam nesses locais. E acolhiam a população de etnia cigana, habituada ao nomadismo e à precariedade dos tectos.

Formaram-se, então, enormes manchas, em torno das cidades, em comunidades demarcadas de cheiros, sabores e sotaques, que tinham como denominador comum a pobreza. E o fechamento ditado por essa pobreza.

Então, na vontade de esconder essas manchas de miséria, começaram a ser contruídos bairros de realojamento, especificamente concebidos para acolher esta população: bairros separados dos outros de classe média; feitos com materiais baratos (para poupar nas despesas, mas, sobretudo, porque os habitantes não teriam grandes exigências); sem preocupações de estética ou conforto, mas apenas com o objectivo de garantir a quantidade de habitações necessárias.

Depois, os bulldozers destruíram as barracas, os barracões e as casas de tijolo, destruíram as territorialidades étnico-culturais que delimitavam as diferentes zonas e os habitantes foram trasladados para os prédios altos, de habitações acanhadas, a que chamaram “bairros sociais”.

A imagem das periferias das cidades ficou substancialmente melhorada e os locais dos antigos “bairros-de-lata” foram objecto de intervenções urbanas que passaram tanto pela construção de grandes eixos rodoviários, quanto pela revalorização dos terrenos e respectivo aproveitamento para o mercado imobiliário “normal”. 

A questão é que as periferias que importam não são as geográficas, que essas ultrapassam-se com uma boa rede de transportes ou com uma boa rede viária. As verdadeiras periferias são as sociais: as que segregam, rotulam e se reproduzem geracionalmente e que, por isso, criam identidades: a identidade do “bairro social”.

As periferias sociais onde a escolaridade é baixa, o desemprego é alto, a dependência de apoios sociais é enorme, as gravidezes são precoces e a criminalidade é elevada (e isto não é casuística, é estatística pura, se cruzarmos os dados da segurança social, os da justiça e da segurança interna, os da educação e os da saúde materno-infantil, com os locais de residência dos indivíduos). É que de nada adianta trasladar pessoas se não forem criadas outras condições para mudar as suas vidas.

As periferias sociais onde os horizontes de expectativas são nulos e as tensões sociais são previsíveis e comuns, o que converte estes bairros em potenciais barris de pólvora em matéria de segurança, em ilhas de desesperança em matéria de mudança social e em verdadeiros guetos em matéria de identidade.

Por isso, mesmo com vista-rio (ou mar, ou serra), não há bons “bairros sociais”. E sim, eles estarão sempre descontextualizados, não no discurso, mas na realidade.