O “novo normal” nos museus

Será que alguma vez a curiosidade animal e a capacidade de intelecção humana se bastarão através de representações virtuais do mundo? Muitos cremos que não e temos, mesmo no actual contexto, boas indicações neste sentido.

Pouco mais de meio ano depois do alastramento da Covid-19 a todo o mundo, diz-se que estamos a entrar, ou entrámos já, em “novo normal”, que tem como traço mais marcante o recurso ao contacto remoto digital e à representação virtual. Teletrabalho, compras em linha, seminários via web, aplicações e sítios encantatórios... enfim, um universo “maravilhoso” na ponta dos dedos, em teclados, ratos, alavancas de jogo, colunas de som, microfones e écrans.

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Pouco mais de meio ano depois do alastramento da Covid-19 a todo o mundo, diz-se que estamos a entrar, ou entrámos já, em “novo normal”, que tem como traço mais marcante o recurso ao contacto remoto digital e à representação virtual. Teletrabalho, compras em linha, seminários via web, aplicações e sítios encantatórios... enfim, um universo “maravilhoso” na ponta dos dedos, em teclados, ratos, alavancas de jogo, colunas de som, microfones e écrans.

No campo vasto da cultura, o mesmo ímpeto digital percorreu por estes meses criadores, mediadores e empreendedores. Tudo se procurou fazer por via remota, a distância. Tudo mesmo: leitura dita comum de clássicos da literatura, audição dita imaginativa de música sem músicos, teatro dito comunitário, visitas ditas educativas a museus e monumentos… e debates, muitos tele-debates, tantos que fartaram. Especialmente ocupadas estiveram as chamadas “indústrias criativas”, que cavalgaram exuberantemente a pandemia e o confinamento, vendendo novos produtos, abrindo novos negócios.

Inversamente, os artistas propriamente ditos viram-se desapossados de quase tudo e mergulharam em poço profundo. Isto foi e ainda é em parte assim especialmente no caso das chamadas artes performativas, onde, por muita e embasbacante pirotecnia que se use, não há como substituir o conjunto de sensações físicas imediatas da música, do teatro ou da dança assistidas ao vivo – a única forma pela qual qualquer destas e de outras formas de arte merecem realmente os nomes que transportam desde remota antiguidade, porventura desde sempre.

E os museus, como se posicionam eles neste quadro? Bom, também aqui os meses que passaram constituíram terreno fértil de afirmação de quem já do antecedente se extasiava com o digital e o virtual, encontrando neles propriedades disruptivas (v. Os museus e o mundo virtual: amigos ou inimigos?, Público, 16.5.2018), quer dizer, capacidades de não apenas aprofundar e melhorar práticas sedimentadas, mas de verdadeiramente “revolucionar” os museus, tornando-os outra coisa, servida por outros agentes. Foi, e continua em parte a ser, o tempo dos vendedores de linguajar (providers de hardware, software, apps, games, devices, gadgets, etc.), que as tutelas dos museus, receberam-nos de braços abertos, porque ninguém deseja passar ao lado do que “está a dar”. Pôde nestes meses não haver dinheiro para reformular espaços expositivos e reservas, para conservar e estudar colecções, porventura editar catálogos, para contratar pessoal, em locais onde os técnicos habilitados vão rareando como água em deserto… mas houve para comprar produtos encantatórios: cenas de vida mais avançadas do que o antigo technicolor em cinemascope e quase tão boas como as dos efeitos especiais por computação gráfica, reconstituições melhores do que rudimentares hologramas e quase tão perfeitas como as dos ambientes tridimensionais imersivos.

Durante os dias do confinamento, as teses dos arautos do digital e do virtual pareciam irrefutáveis: a procura por via remota seria o futuro; o museu em suporte real passaria a assimilar-se progressivamente ao modelo de arquivo, dirigido a minorias cada vez mais reduzidas. Estava a passar a época em que as pessoas se sentiam empaticamente ligados à aura dos originais, sendo que estes, aliás, desiludem com frequência, porque descoloridos, fragmentados, enfim, difíceis de ver e entender. Um “novo normal” emergia, no qual as fronteiras entre verdadeiro/falso, original/cópia, real/virtual se esbateriam a tal ponto que se poderia com propriedade falar também em “novo mundo”, que no passado se anteviu “admirável”.

Chegados aqui, porém, hesitamos. Será que alguma vez a curiosidade animal, primeiro, e a capacidade de intelecção humana, depois, se bastarão através de representações virtuais do mundo? Muitos cremos que não e temos, mesmo no actual contexto, boas indicações neste sentido. Vejamos uma delas, a que resulta da análise das tendências de pesquisa no motor de busca mais universalmente usado, o Google.

Em finais de Abril passado, já dois bisonhos britânicos se digladiavam em torno do que seria o verdadeiro impacte do digital e do virtual nos museus, usando para o efeito indicadores retirados da fonte indicada. Primeiro, um deles garantia que as pessoas não querem visitas virtuais a museus, querem mesmo visitá-los; dias depois, outro dizia que de facto sim, as pessoas querem mesmo essas visitas. Passado mais tempo, com os dados até ao final de Agosto, que podemos concluir? Bom, que talvez ambos tenham alguma razão, mas com inegável e quase esmagadora tendência no sentido do que afirmava o primeiro deles.

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O gráfico acima mostra a evolução ao longo de um ano das tendências de pesquisa dos seguintes tópicos no Google, a nível mundial: museu virtual, visita de campo virtual, museu próximo de mim e visita a museu. Os dois primeiros dão mais conta do que seria o “novo normal” baseado no digital e no virtual; os dois últimos, o contrário. Análise mais fina seria interessante e permitiria, por exemplo, distinguir o que se passa em continentes diferentes (na América do Norte uma maior afeição ao virtual do que na Europa), mas mesmo a este nível é notório que a procura pela oferta digital e virtual constituiu um fenómeno explosivo estritamente ligado ao confinamento, tendo depois vindo a decair rapidamente, enquanto tendência oposta ocorre na procura de informação para visita física aos museus. A nível mais detalhado, verifica-se todavia que a atenção dada aos produtos digitais deverá provavelmente estabilizar em níveis algo superiores aos do antecedente; e o interesse pela visita a museus ainda não recuperou totalmente, sendo sobretudo visível nas situações de proximidade.

Veremos com o passar do tempo e o retomar dos contactos a longa distância qual o “novo normal” que realmente os museus irão vivenciar. Para já o que podemos prever é que alguns, os que se deixaram prender pelo beijo de aranha do turismo de massas e pelos cantos de sereia do “mercado”, poderão talvez tardar em recuperar os seus públicos. No nosso país, estes serão sobretudo os do Ministério da Cultura, onde à falta de políticas e de orçamento do Estado se acrescenta agora a falta de receitas próprias. Mas a maioria, os que vivem ancorados nas comunidades que afinal os criaram, sofrerão menos e poderão sair desta crise até em melhores condições, porque mais despertos para as actuais tecnologias da comunicação a distância. Resta esperar, com algum optimismo (alguns dirão candura), que tenham também aprendido que o seu “quase” na forma como se conseguem aproximar às tecnologias de efeitos especiais não chega para os distinguir e em última análise lhes garantir perenidade. Aquilo que verdadeiramente os diferencia são as suas colecções de originais, para serem vistas e sentidas fisicamente.