O teletrabalho bom não é isto

Desde Março, quem tinha horário das 9h às 17h passou a trabalhar das 8h às 20h. Não só não deixou de ter horário como o viu crescer. Porque em casa a produtividade não é igual. Ou não parece igual.

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Em casa, também se demora mais tempo a vestir a pele de profissional. Isto, sem que nunca se consiga despir as peles de mãe/pai, domésticos, amantes… Paulo Pimenta

Os benefícios do teletrabalho cansam-me. Não me interpretem mal: trabalhar a partir de casa pode ser a quinta maravilha. Entrar à hora que apetece, gerir horário conforme o próprio relógio biológico, não ter de andar em transportes públicos e esquecer o que é exactamente uma fila de trânsito. Embora fique mais dispendioso: é mais caro trabalhar em casa, mesmo com o que se poupa em passe ou combustível (a conta da luz cresce, a da água dispara — até o número de rolos de papel higiénico contam neste balanço). Só que não é por aqui que o teletrabalho perde encanto.

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Os benefícios do teletrabalho cansam-me. Não me interpretem mal: trabalhar a partir de casa pode ser a quinta maravilha. Entrar à hora que apetece, gerir horário conforme o próprio relógio biológico, não ter de andar em transportes públicos e esquecer o que é exactamente uma fila de trânsito. Embora fique mais dispendioso: é mais caro trabalhar em casa, mesmo com o que se poupa em passe ou combustível (a conta da luz cresce, a da água dispara — até o número de rolos de papel higiénico contam neste balanço). Só que não é por aqui que o teletrabalho perde encanto.

Para quem tem filhos, numa situação não pandémica, representa não ter de os despachar para a escola quando têm uma pontinha de febre ao acordar. E até dar-lhes tempo para se recuperarem das maleitas. Também quer dizer que se consegue organizar o dia para estar presente em todas as reuniões propostas pelos professores, que se tem disponibilidade para aquela consulta a meio da tarde ou que se pode simplesmente ir ao cabeleireiro a meio da manhã ou passar três horas a almoçar com um amigo.

Com os miúdos em casa, como acontece nos períodos de férias escolares, ajustam-se as tarefas para horas mortas. Despacha-se trabalho cedo, antes que eles acordem, continua-se pela tarde, nas horas de maior calor em que sair de casa nem é aconselhável, e termina-se pela noite, quando já foram para a cama. Pelo meio, há tempo para ir ao parque, à praia, ao rio. Enfim, para os aproveitar.

Sei disto de trás para a frente porque foi o que fiz ao longo de 16 anos. Mas — e este é um grande “mas” —, não trabalhava por conta de outrem nem tinha horário estipulado. Tinha tarefas a cumprir e prazos para respeitar (e, às vezes, esticados ao limite porque há sempre nesta equação uma série de imprevistos quando se trabalha a partir de casa: é a máquina da roupa que avaria, o gato que vomita em cima do teclado, a cadela que se magoou… E estes não são cenários hipotéticos — aconteceram de facto). E não é este o teletrabalho que se propõe.

Desde Março, quem tinha horário das 9h às 17h passou a trabalhar das 8h às 20h. Não só não deixou de ter horário como o viu crescer. Porque em casa a produtividade não é igual. Ou não parece igual, levando-nos numa contínua corrida atrás do prejuízo.

Em casa, também se demora mais tempo a vestir a pele de profissional. Isto, sem que nunca se consiga despir as peles de mãe/pai, domésticos, amantes… Em casa, cada intervalo do computador ou do telefone não serve para deitar dois dedos de conversa fora, beber um cafezinho ou passar os olhos por um jornal ou revista. Pára-se com um trabalho para se realizar outro qualquer: vai-se tirar a roupa da corda, adiantar o almoço, lavar o chão…

Depois, à noite, com a cozinha arrumada e o silêncio pensa-se que se devia, se calhar, aproveitar para adiantar qualquer coisa. E “volta-se ao escritório”, ligando o computador. Quando se dá por ela são duas da manhã e ainda se anda à volta de folhas de Excel ou de relatórios infinitos. 

Por estes dias, o Rui Pelejão escrevia no Jornal do Fundão que “há dois tipos de pessoas que não suportam o teletrabalho”. “Os chefes e os mandriões”, concluía, defendendo que “ganha-se menos, mas vive-se mais”.

Normalmente, subscrevo (ou quase) o que escreve. Mas, neste caso, olho para este cenário sob uma perspectiva menos optimista. Não só não se vive mais como se perde vida. Aliás, temo que nesta multiplicidade de papéis que muita gente é obrigada a viver em regime de teletrabalho — e nem vou contabilizar o de professor, já que devemos analisar o teletrabalho numa situação regular, com os garotos a irem para a escola — nos vamos gradualmente esquecendo de quem somos.