Número de profissionais de saúde em contacto com o vírus é dez vezes superior ao diagnosticado

Testes serológicos foram aplicados num hospital de Lisboa e outro do Porto a 657 profissionais de saúde. Detectou-se a presença de anticorpos para o SARS-CoV-2 em cerca de dez vezes mais profissionais do que tinha sido identificado em testes de diagnóstico.

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MÁRIO CRUZ/Lusa

A Fundação Champalimaud, em parceria com a Ordem dos Enfermeiros, fez um rastreio serológico ao novo coronavírus junto de enfermeiros e de assistentes operacionais hospitalares (num total de 657) no Hospital de Santo António (no Porto) e no Hospital de Santa Maria (em Lisboa). Os resultados, divulgados nesta quinta-feira, revelam que o número daqueles profissionais de saúde que esteve em contacto com o SARS-CoV-2 é cerca de dez vezes superior ao detectado antes em testes de diagnóstico.

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A Fundação Champalimaud, em parceria com a Ordem dos Enfermeiros, fez um rastreio serológico ao novo coronavírus junto de enfermeiros e de assistentes operacionais hospitalares (num total de 657) no Hospital de Santo António (no Porto) e no Hospital de Santa Maria (em Lisboa). Os resultados, divulgados nesta quinta-feira, revelam que o número daqueles profissionais de saúde que esteve em contacto com o SARS-CoV-2 é cerca de dez vezes superior ao detectado antes em testes de diagnóstico.

Os testes serológicos aplicados procuraram a presença de duas classes de anticorpos produzidos pelo nosso sistema imunitário contra o coronavírus SARS-CoV-2 – os anticorpos IgA e IgG.

Os anticorpos IgA surgem por volta da primeira semana após a infecção e mantêm-se, em níveis bastante elevados para o novo coronavírus, durante três a quatro semanas, explica o imunologista Henrique Veiga Fernandes, co-director do Centro Champalimaud, em Lisboa. Já os IgG aparecem normalmente na segunda semana após a infecção e mantêm-se durante mais tempo, que poderá ser de meses ou anos, dependendo do tipo de vírus que provoca a infecção. No caso do SARS-CoV-2, essa duração é uma incógnita – “não sabemos quanto tempo vai manter-se”.

Indo ao rastreio agora realizado, no caso do Hospital de Santo António os enfermeiros potencialmente expostos à covid-19 ascendiam a 359 e os assistentes operacionais hospitalares chegavam aos 258. Deste universo, foram recolhidas amostras sanguíneas (de forma aleatória) a 347 enfermeiros e assistentes operacionais (206 enfermeiros e 141 assistentes operacionais), também potencialmente expostos ao vírus.

Resultado do rastreio serológico naquele hospital do Porto: 8,4% dos profissionais de saúde estiveram em contacto com o vírus, o que é dez vezes superior aos resultados dos testes de diagnóstico a que tinham sido submetidos (0,86%) e que procuraram a presença do material genético do vírus. Enquanto um teste de diagnóstico indica se o vírus está ou não presente no organismo naquele exacto momento (através da técnica de PCR)​, um teste serológico diz se a pessoa já esteve em contacto com o vírus, podendo tanto estar ainda infectada como já não estar. Mas a memória da infecção mantém-se, mesmo com a infecção já debelada.

Em relação ao Hospital de Santa Maria, os enfermeiros potencialmente expostos à covid-19 eram de 355 e os assistentes operacionais, 188. Deste universo, fizeram-se testes a 310 desses profissionais de saúde (184 enfermeiros e 126 assistentes operacionais). Também aqui os resultados serológicos indicam que o número de profissionais de saúde que contactou com o vírus é superior aos resultados anteriores dos testes de diagnóstico. O rastreio aponta para 6,5% de profissionais de saúde com anticorpos contra o SARS-CoV-2, ao passo que os testes de diagnóstico tinham apanhado no radar 0,6% de infectados. Ou seja, 11 vezes mais profissionais contactaram com o vírus.

O teste laboratorial utilizado neste estudo, que é comercial (de uma empresa alemã), permite detectar não apenas se há (ou não) anticorpos nas amostras, mas também a sua quantidade. “Dão uma noção da quantidade de anticorpos que cada indivíduo tem”, adianta o investigador, dizendo que a escolha da equipa recaiu sobre este teste comercial já validado na Europa e acabado de aprovar nos Estados Unidos pela FDA (a autoridade que regula os medicamentos e alimentos no país). Tem uma precisão de 99,6% para a chamada “especificidade” – ou seja, evita os falsos positivos. Caso contrário, apontaria para mais pessoas infectadas do que na realidade estão e poderia dar uma sensação enganadora de protecção já adquirida. Já a “sensibilidade” (a capacidade de evitar os falsos negativos) é de 93,8% neste teste, segundo explica o investigador.

Também há uma boa notícia

Que leitura faz Henrique Veiga Fernandes dos resultados serológicos nos dois hospitais portugueses? “Estes profissionais de saúde estiveram infectados com covid-19 sem o saberem”, começa por responder o imunologista. “O que estes resultados vêm indicar é que o número de pessoas infectadas com testes de diagnóstico com resultado positivo é bastante inferior ao real número de pessoas que foram infectadas”, acrescenta o investigador. “E porquê? Porque de facto há uma percentagem bastante elevada de pessoas infectadas que não têm sintomas ou têm sintomas muito ligeiros que não são valorizados. Como tal, não são direccionadas para um teste de diagnóstico. É o que chamamos infecção silenciosa”, explica ainda o investigador. “Não é propriamente surpreendente. Já o sabíamos de estudos anteriores, por exemplo na China, em que quatro em cinco indivíduos infectados eram assintomáticos.”

Mesmo fazendo um número elevado de testes de diagnóstico – Portugal até está aí numa posição de liderança –, Henrique Veiga Fernandes salienta que esse tipo de testes só mostra a “ponta do icebergue”.

Saber que percentagem da população esteve, afinal, infectada é importante por duas razões, aponta ainda o investigador. Por um lado, permite fazer projecções mais robustas sobre a evolução futura da pandemia, o que é importante para a decisão política sobre a reabertura da sociedade e da economia. Por outro lado, traz uma boa notícia: “Uma consequência imediata de termos um número muito superior de pessoas que foram infectadas, mesmo sem o saberem, é que a taxa de letalidade por esta doença é inferior à que inicialmente pensávamos”, nota Henrique Veiga Fernandes. “Não estou a desvalorizar esta doença, que do ponto de vista clínico é única e tem uma progressão cavalgante. Há muito tempo que não se via nos cuidados intensivos uma doença infecciosa com uma progressão tão rápida. Mas a boa notícia é que a taxa de fatalidade é inferior ao que inicialmente se pensava.”

Estes resultados seguem na mesma linha de um outro estudo serológico recente que a Fundação Champalimaud fez no concelho de Loulé, em parceria com o Centro Académico de Investigação e Formação Biomédica do Algarve (ABC), a profissionais potencialmente expostos à pandemia de covid-19.

Entre as 1235 pessoas testadas – todo o universo de bombeiros, forças de segurança, protecção civil, funcionários dos lares e jornalistas na linha da frente da covid –, verificou-se que 2,8% tinham anticorpos para o novo coronavírus, neste caso anticorpos IgG e IgM (estes aparecem também mais no início da infecção, mas desaparece mais depressa do que os IgA). “Portanto, é 14 vezes superior. É muito semelhante ao que temos agora nestes dois hospitais”, remata Henrique Veiga Fernandes a propósito dos novos resultados para o Hospital de Santo António e o Hospital de Santa Maria.