Os mais velhos sentem-se a perder tempo de vida e a alegria desapareceu

É nas faixas etárias mais elevadas que os efeitos psicológicos do confinamento e da pandemia são mais intensos, concluiu estudo do Observatório da Solidão. Entre os 70 e os 75 anos, 75% sentem estar a perder tempo de vida.

Foto
Paulo Pimenta

A pergunta é directa e impactante: “Sente que está a perder tempo de vida?” Entre as 411 respostas validadas, 30% dos inquiridos afirmam ter esse sentimento “muitas vezes”. Mas os dados mais impressionantes estão nas franjas: entre os mais jovens (16-20 anos) a percentagem sobe para os 41% e entre os mais velhos (70-75 anos) para 75%. É um número revelador, sobretudo se agrupado com outros dois: nesta faixa etária mais elevada nenhum dos inquiridos diz sentir alegria com muita frequência nestes dias de pandemia e apenas 25% diz ter muitas vezes esperança de que a vida vá melhorar. Todos sentem receio, muitas vezes, que o país vá piorar economicamente.

Estes resultados de um estudo do Observatório da Solidão, do Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo, sobre a forma como a pandemia é vivida e sentida pelos portugueses, confirmaram a Adalberto Carvalho, director do instituto e criador do observatório, uma realidade da qual já suspeitava: é entre os mais velhos que a pandemia parece ter efeitos mais nefastos do ponto de vista psicológico e comportamental. E isso reforça a necessidade de criar ferramentas para dar apoio a esta população.

“O confinamento tem aspectos positivos inquestionáveis em termos de controlo da pandemia, mas tem outras consequências que não podem ser desprezadas: as psicológicas e comportamentais”, sublinha Adalberto Carvalho, um dos quatro autores do estudo feito através de um questionário online a pessoas entre os 16 e os 75 anos – acima desta idade o número de respostas obtidas não foi o suficiente para ser considerado. Essa realidade pode, entre outras coisas, “agudizar processos de senilidade a quem já tinha esse quadro e criar um sentimento de angústia perante os anos que estão a ser perdidos”. Perdem tempo com os filhos e netos, o contacto com os amigos, rotinas banais como comprar o jornal, ir ao café ou ao cabeleireiro, exemplifica: “A vida íntima fica prejudicada.” E essa vida mais privada “tende a ser esquecida”: “Quanto mais confinadas as pessoas estão, mais invisíveis se tornam”, alerta.

Solidão, família e amigos

Mas voltemos ao estudo. E a um dado sobre solidão: curiosamente, só 19,2% da população inquirida declara sentir-se só muitas vezes, havendo 29,9% a experienciar esse sentimento algumas vezes e 26,3% a tê-lo raramente. Mais uma vez, os mais velhos (faixas 60-70 e 70-75) têm essa sensação mais vezes do que os mais novos (no grupo dos 25-30 anos são apenas 13% os que declaram sentir-se sozinhos muitas vezes).

Para isto, poderão contribuir dois factores. Por um lado, a ligação à tecnologia, por outro os laços afectivos. A maioria dos inquiridos diz que a família (74%) e os amigos (69,6%) os procuram muitas ou algumas vezes. E já muito se escreveu sobre a almofada que as atitudes solidárias podem significar no combate ao surto de covid-19: “Não há remédios milagrosos, mas há alguns que podem atenuar o problema”, afirma Adalberto Carvalho. Mais de metade dos inquiridos (54%) que procura ajuda de familiares e amigos diz recebê-la muitas vezes. E os conselhos tornaram-se também frequentes, muitas ou algumas vezes, para 76,8% (dar) e 71% (receber). Na faixa dos 70-75 anos o valor sobe para 100%: todos deram ou receberam sugestões por estes dias. A necessidade de ajudar os outros é também grande: 69,1% do total de inquiridos diz senti-lo muitas ou algumas vezes.

O apoio psicológico neste cenário “pode vir de vários caminhos”. Por parte de profissionais, apesar das condicionantes existentes, mas também “através das redes familiares e de amigos”. Adalberto Carvalho aponta como “consequência positiva” destes dias do avesso o “reavivar do sentido de comunidade”. Se nos queixávamos de saber “cada vez sabemos menos do vizinho do lado e mais de um cidadão que está nos EUA”, exemplifica, agora parece haver ventos de mudança – mesmo que sejam temporários.

O sentimento de perda de tempo de vida, aponta, “pode ser suportável ou insuportável” consoante a acção consequente – e é sobretudo na família que esse jogo se ganha ou perde. Adalberto Carvalho está confiante: “Em Portugal, temos um sentido de família muito forte. Pode ser uma almofada muito importante.”

E a tecnologia também: “Como estaríamos a viver esta crise existencial sem os meios de comunicação virtual que temos? A visualização da imagem dos amigos e familiares é tão próxima que quase ilude o toque. Só não dá o beijo ou o abraço. Mas tem uma importância extraordinária”, aponta o investigador, autor de vários livros sobre o tema da solidão. Viver esta pandemia no século XXI comparando com as condições da chamada gripe espanhola, em 1918, é, por isso, “muito diferente”.

A ansiedade é sentida algumas vezes, ainda assim, por mais de metade (58%) dos inquiridos, com maior incidência entre as mulheres (30%) do que entre os homens (14%). Já o consumo de ansiolíticos, habitualmente alto em Portugal, não apresenta valores relevantes: 83% diz nunca tomar sedativos. Numa aparente contradição, uma larga maioria diz que o país ficará economicamente pior (90%) ao mesmo tempo que a maior parte (82%) sente também, muitas e algumas vezes, uma esperança de que a vida melhore. “Há uma preocupação enorme com a situação económica. Mas isso não tira o sentimento de esperança, que é mais abstracto: vai piorar, mas depois havemos de melhorar…”

Muita TV, pouca leitura

O estudo do Observatório da Solidão, já com 16 anos de experiência, mostra que a esmagadora maioria da população (91%) está a cumprir o confinamento. E, apesar de permanecerem em casa quase todo o dia, todos os dias da semana, os conflitos ainda não reinam: 41% dizem que raramente se têm irritado com as pessoas próximas. Ainda assim, os homens (46%) ficam irritados mais vezes do que as mulheres (26%), embora eles (28,8%) discutam menos do que elas (31,6%). Os animais de companhia, declaram 61%, têm um papel importante na gestão destes dias.

E o que mais se faz em casa? Os hábitos de leitura não parecem ganhar com o confinamento: mais de metade (52%) diz ler livros ou revistas raramente ou apenas algumas vezes e 30% diz mesmo nunca ler. O mesmo não se verifica quanto aos ecrãs. A internet é usada por quase todos (94%) e mais de metade (54%) navega com frequência em redes sociais. O acompanhamento dos noticiários é feito maioritariamente pela televisão (54%), em contraste com o rádio (14%). Em relação à imprensa, só 11% a lê muitas vezes e 43% nunca lê. Entre os mais jovens (16-20 anos) este valor sobe para 58%.

Actividades religiosas não são, de momento, praticadas pela maioria (74%) e o exercício físico não parece ser uma prioridade, com metade dos inquiridos a admitir nunca sair para fazer o “passeio higiénico” falado pelo primeiro-ministro, António Costa, e 84% a declararem nunca dar passeios longos.