A ocasião faz o charlatão

Para já, a coesão pós-”Brexit” mantém-se — mas até quando? Pelo cinismo de uns e o aventureirismo de outros, o precedente está criado.

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Reuters/HENRY NICHOLLS

Três anos e meio após o referendo, eis o desenlace do "Brexit”. Três anos e meio de som e fúria, avanços e recuos, reviravoltas e impasses. Três anos e meio em que o noticiário internacional oscilou entre as altas abstracções da teoria jurídica e a baixeza pedestre do sectarismo ideológico. Bonito serviço. E agora?

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Três anos e meio após o referendo, eis o desenlace do "Brexit”. Três anos e meio de som e fúria, avanços e recuos, reviravoltas e impasses. Três anos e meio em que o noticiário internacional oscilou entre as altas abstracções da teoria jurídica e a baixeza pedestre do sectarismo ideológico. Bonito serviço. E agora?

A parte mais difícil da fase mais fácil está feita – falta o resto. Como na metáfora oitocentista de Alexander Herzen, o Reino Unido é, agora, uma “viúva grávida”: vive um momento de transição política em que a velha ordem já morreu, mas não nasceu ainda uma nova ordem que a substitua. Não se augura um futuro radioso para quem renunciou aos direitos de Estado-membro e voluntariamente se colocou à mercê dos interesses divergentes dos 27 que restam; e não é crível que a ânsia de “take back control” se traduza numa capacidade acrescida de lidar com problemas que, tantas vezes, assumem uma dimensão transfronteiriça, ou que exigem um maior peso geopolítico na relação com grandes potências (EUA, Rússia, China). Desde que este processo se iniciou, traçaram-se inúmeras analogias com sketches célebres da britcom, a começar no Yes, Minister e a acabar nos Monty Python. Mas julgo que nenhuma sintetiza tão bem a precária posição britânica como o tweet do jornalista David Osler: “Vou cancelar a Netflix e negociar com cada produtora de cinema separadamente, para obter um melhor acordo para mim e para a minha família. #Brexit.”

A ocasião – pode dizer-se – fez o charlatão. Quem se recorda das semanas que precederam o referendo de 2016 sabe que a campanha dos brexiteers assentava numa amálgama confusa de argumentos desconexos, fruto da ignorância ou da má-fé. Mas nada disso era novo. A demonização de “Bruxelas” tem sido, há muito, um estratagema usado por oportunistas para iludir os eleitorados: a “Bruxelas” de que se alimenta a retórica anti-europeia, enunciada sempre de modo difuso e cabalístico, tornou-se um bode expiatório a que se recorre para ocultar as insuficiências dos governos nacionais. Nada disto implica que não se vislumbrem disfunções no funcionamento da União Europeia (UE); mas, mesmo que lhe apontemos um “défice democrático” (na expressão cunhada por David Marquand), esses defeitos não legitimam o simplismo demagógico a que o debate público sobre temas europeus tantas vezes se reduz.

Como se sabe, a arquitectura institucional da UE procura um equilíbrio instável entre fontes de legitimidade distintas. Na perspectiva federalista, a sua legitimidade radica num consenso tácito entre as instituições europeias e as populações dos diversos Estados nacionais, através do qual estes alienam voluntariamente algumas prerrogativas de soberania. A estas teorias contrapõem-se os defensores do intergovernamentalismo, que advogam a participação dos governos nacionais no processo decisório, por serem estes os órgãos representativos dos cidadãos.

Daí que a história da construção europeia sempre tenha balanceado entre dois pólos: a integração pela via supranacional, com supremacia das instituições europeias sobre os governos nacionais e a integração pela via intergovernamental, com os governos nacionais a conduzirem o processo. E o labiríntico artigo 294.º do dito Tratado de Lisboa atesta bem essa tensão, em matéria legislativa, pelas competências que reparte entre o Parlamento, a Comissão e o Conselho. Por outras palavras, quando se fala na “Europa” — uma “Europa” personificada num ente coeso e homogéneo — esquece-se que os seus processos deliberativos articulam interesses díspares e muitas vezes contraditórios, que engendram os acordos possíveis e nem sempre as soluções ideais. Ou, na formulação lapidar de Keukeleire e MacNaughtan, trata-se de uma União “una de nome, dual no regime, múltipla por natureza”.

Para quem gosta de bravatas, deve ser muito exaltante bater no peito patriótico contra “Bruxelas” e “a Europa”. Mas os efeitos da lenta erosão institucional ou de rápidas saídas desordenadas são imprevisíveis e recomendariam alguma prudência nas proclamações estentóreas de “orgulho” nacional. Para já, a coesão mantém-se — mas até quando? Pelo cinismo de uns e o aventureirismo de outros, o precedente está criado.