A voz de Kiwanuka e a harpa de Angélica soaram mais alto na Avenida

A soul do britânico Michael Kiwanuka encheu o Coliseu, e a harpa da espanhola, a residir no Porto, Angélica Salvi, fez-se ouvir bem alto, na primeira noite do festival Super Bock em Stock, aos ziguezagues pela avenida da Liberdade.

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Nos primeiros anos do festival Super Bock em Stock, aos ziguezagues pela Avenida da Liberdade, em Lisboa, para além das novidades da música, sabia bem redescobrir à noite uma zona então pouco vivida da cidade e uma série de espaços, alguns deles em desuso, situados naquela zona.

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Nos primeiros anos do festival Super Bock em Stock, aos ziguezagues pela Avenida da Liberdade, em Lisboa, para além das novidades da música, sabia bem redescobrir à noite uma zona então pouco vivida da cidade e uma série de espaços, alguns deles em desuso, situados naquela zona.

Uma década depois a Avenida da Liberdade está totalmente transformada – agora a novidade é perceber quais as lojas que abriram ou encerraram. Os espaços então desactivados, como o Capitólio, fazem parte do roteiro normal de salas. O festival foi mudando de nome, ao sabor do patrocinador, sendo adoptado como festival da Avenida. O conceito, com deambulações de sala em sala, tornou-se normal em Portugal.

A filosofia do cartaz, mistura de dois ou três nomes mais sonantes, e uma série de figuras emergentes, mantém-se. O público, esse, foi-se renovando um pouco, em grande parte devido ao turismo, e o cartaz acompanha essa tendência, com uma série de referências a apontar ao gosto de fora, principalmente dos ingleses.

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Angélica Salvi Francisco Romão Pereira

Significa que alguma coisa tem de mudar? Não necessariamente, principalmente se entre as propostas musicais surgirem daqueles momentos que provocam verdadeiro alvoroço emocional. Aí tudo o resto se esquece. Mas não foi isso que aconteceu na primeira de duas noites do festival. Houve bons momentos, mas nenhum daqueles concertos para mais tarde recordar. Pelo menos dos que vimos.

O cabeça-de-cartaz da noite era indiscutivelmente Michael Kiwanuka que acabou de lançar um magnífico álbum, o seu terceiro registo, e o Coliseu cheio, provava essa condição. Depois de anteriores e discretas vindas a Portugal poderia ter sido um momento de afirmação. Ficou-se pelo meio-termo. A opção foi revisitar temas dos dois anteriores álbuns, com o sucesso Cold little heart a gerar a resposta mais entusiasta, tocando apenas três canções do novo registo (You ain’t the problem, Rolling e Hero), onde a fasquia se elevou nitidamente.

Na excelente You ain’t the problem ou em Rolling foi possível descortinar o renovado Kiwanuka, mais vibrante, eléctrico, solto e psicadélico, sem deixar o registo clássico soul, enquanto em Hero vieram ao de cima os deleites expansivos da sua guitarra, com toda a banda (quatro músicos e duas cantoras de apoio) a lançarem-se numa desafiante digressão sonora, com a expressividade da voz quente a ressaltar. Nesta nova fase há mais solos de guitarra, e uma aproximação mais roqueira e desarrumada à soul, mas os restantes temas trouxeram harmonias, momentos introspectivos, enlevos acústicos e jogos vocais – com destaque para o vozeirão de uma das acompanhantes – que constituem também a sua identidade.

Ficou a ideia que está num processo de transição. Por um lado, quer descolar da ideia de ser cantor de um ou dois êxitos transversais, para se posicionar como verdadeiro autor soul, capaz de transportar essa memória, sem ficar refém dela. O público, esse, não lhe poupou aplausos no final quando abordou Love & Hate, naquele registo de brandura que lhe deu sucesso, e que no último álbum diversifica, atribuindo-lhe novas tonalidades.

Algo semelhante já se havia vivido antes, no mesmo local, com Sinkane, outro britânico com raízes africanas, neste caso no Sudão. E isso sente-se na sua música, um composto de soul, funk, psicadelismo, afro-beat e dub, que por vezes é capaz de expor de forma desafiante essa riqueza, outras fica-se pelo comedimento. Daí resultou um concerto que foi vivido com entusiasmo em palco, mas essa vibração só a espaços passou para o lado da plateia.

Excitação foi o que não faltou com os alemães Meute, que na Estação do Rossio recriaram temas de música house ao som da fanfarra, uma espécie de banda filarmónica com uma dezena de músicos a investirem em temas dançantes. Uma ideia que cria impacto e entusiasmo, com muitos turistas entre o público, mas que passado algum tempo acaba por esgotar-se.

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Nilüfer Yanya Francisco Romão Pereira

Menos pessoas havia para assistir ao momento performativo, da harpista espanhola, a residir no Porto, Angélica Salvi, que acaba de lançar um magnífico álbum, Phantone. Música encantatória, circular, hipnótica, com qualquer coisa de pacificador, difícil de situar pela singularidade. Nem música contemporânea, electroacústica, improvisada ou de ambientes folk, mas tudo isso um pouco, com Salvi, a harpa e alguns efeitos electrónicos, a devolverem-nos uma jornada retemperadora. Para quem ainda não a conhecia, é capaz de ter sido a descoberta mais desafiante do dia. Actuou na Garagem da Epal, onde mais tarde se estreariam os Club Makumba de Tó Trips (Dead Combo) e João Doce. Diz quem viu que temos banda.

No São Jorge, havia muita curiosidade para ver o que faria Nilüfer Yanya, autora de algumas canções mais excitantes do universo indie-pop actual, possuídas de garra e energia, aliando uma voz doce e juvenil, guitarras rasgadas, sintetizadores dançantes e melodias pop. Esteve longe de ser um mau concerto, mas foi como o resto da noite – faltou qualquer coisa. A simbiose entre palco e plateia nunca aconteceu verdadeiramente, excepção a dois membros do público que, à boca do palco, dançaram e exultaram do início ao fim.

Este sábado, na teoria, olhando para o cartaz, é natural que o entusiasmo se dissemine por mais salas. Por exemplo, por aquelas onde evoluirão Slow J, Curtis Harding, Vum Vum, Orville Peck, Helado Negro, Josh Rouse ou Viagra Boys.