Stress pós-traumático de guerra, “bomba no cérebro” dos ex-militares

Mais do que medicamentos, os efeitos, de que sofrem 140 mil afectados, podem ser reduzidos ou controlados através do apoio psicológico.

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Funeral em 2017, em Portugal, de militar morto em Angola, em 1963 Nuno Ferreira Santos

O stress pós-traumático de guerra afecta centenas ou milhares de militares portugueses, 45 anos depois da Guerra Colonial, e ainda esta quarta-feira emocionou os participantes num colóquio, em Lisboa.

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O stress pós-traumático de guerra afecta centenas ou milhares de militares portugueses, 45 anos depois da Guerra Colonial, e ainda esta quarta-feira emocionou os participantes num colóquio, em Lisboa.

Afonso de Albuquerque, médico miliciano em Moçambique (1961-64), psiquiatra, pioneiro da primeira consulta de tratamento do stress pós-traumático de guerra, foi um dos convidados do encontro da Associação de Apoio aos ex-Combatentes Vítimas do Stress de Guerra (Apoiar) para falar da sua experiência e emocionou-se quando lembrou os soldados que morreram “inutilmente” na Guerra Colonial, entre 1961 e 1975.

Na sala da Fundação Calouste Gulbenkian, uma plateia de cerca de 50 pessoas, entre técnicos, associados da Apoiar e antigos combatentes em Angola ou na Guiné-Bissau, ouviram-se lágrimas e palmas às palavras do psiquiatra que era contra a guerra e por isso foi preso num quartel de Moçambique, em 1961, por uma denúncia de um agente da PIDE, a polícia política da ditadura.

Não existem número exactos, embora estimativas do especialista apontassem, em 2003, para 140 mil o número de pessoas a sofrer do trauma que, como disse, “não tem cura”. Podem mitigar-se os seus efeitos, mas é “uma espécie de bomba ao retardador no cérebro da pessoa” e pode “explodir” meses ou até anos depois, explicou.

Na Apoiar e em mais quatro associações, há cerca de 500 pessoas que têm apoio médico especializado, das quais 350 ex-militares e 150 familiares, mulheres ou filhos, que também sofrem os efeitos do stress pós-traumático de guerra.

Afonso de Albuquerque não falou só da doença e da experiência de tratamento. Relembrou que muitos dos soldados da sua companhia que foram para o Norte de Moçambique “nunca tinham visto um negro na vida”. Estavam sujeitos à propaganda do regime para se “matar” o inimigo, nem que fossem crianças, para “não virem a ser terroristas”, terminologia do regime para os guerrilheiros pró-independência em África.

Ele, que tinha a esperança de que o contacto com a realidade, no dia-a-dia, motivasse os jovens soldados portugueses a serem “contra a guerra”, o que viu foi uma lógica de sobrevivência, traduzida na ideia de “matar para não ser morto”. Quando voltaram a Portugal, lembrou, estes soldados que foram enviados, pelo regime de Salazar, “para a guerra como heróis”, regressaram, já depois do 25 de Abril, quase “como assassinos”.

E durante mais de 20 anos, até à primeira consulta do stress pós-traumático, apenas os deficientes físicos tiveram tratamento e apoio da parte do Estado, enquanto o tratamento desses traumas ficou adiado. Mais do que medicamentos, os efeitos podem ser reduzidos ou controlados através do apoio psicológico, explicou o psiquiatra.