Já não há sabão azul no lavadouro de Carnide mas ninguém o quer esquecer

Finalistas do curso de Teatro da Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha fazem visitas guiadas e encenadas ao lavadouro público de Carnide. No final, recuam-se uns bons anos num workshop que dá dicas de como lavar a roupa à mão. Quem se atreve a pôr as mãos na água fria?

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— “Quando a avó era pequena lavava-se a roupa à mão com sabão azul. Quando a avó era pequena a água do tanque servia para muitas pessoas e o estendal era um fio tão grande tão grande que chegava para estender a roupa de todas as pessoas que viviam no bairro, e ainda sobrava um grande bocado para pendurar a roupa das condessas. Quando a avó era pequena havia muitas coisas que já não existem, até condessas!”

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— “Quando a avó era pequena lavava-se a roupa à mão com sabão azul. Quando a avó era pequena a água do tanque servia para muitas pessoas e o estendal era um fio tão grande tão grande que chegava para estender a roupa de todas as pessoas que viviam no bairro, e ainda sobrava um grande bocado para pendurar a roupa das condessas. Quando a avó era pequena havia muitas coisas que já não existem, até condessas!”

Era um local onde se contavam segredos, trocavam confidências, combinavam festas. Faziam-se amizades. Lavava-se “a roupa suja” — literalmente ou não — e partilhavam-se truques para deixar a roupa mais branca. Por vezes, era até preciso andar à bulha para conseguir um lugar no tanque.

A pouco a pouco os lavadouros públicos foram desaparecendo. Hoje são lugar de memórias colectivas. Em Carnide, ainda há pelo menos um tanque público, na Estrada da Correia, que, de segunda a sexta-feira, das 9h às 17h, ainda cumpre a sua função. Basta bater à porta do centro paroquial, ali ao lado, e pedir a chave. Mas tirando uma ou outra pessoa que aparece para lavar um tapete e da Dona Rosa, que ainda tira dali o seu sustento, já poucos fregueses se vêem por ali. 

É um lavadouro público municipal, dos poucos que ainda existem na cidade, e é gerido pela Junta de Freguesia de Carnide. Terá sido construído há quase 100 anos, para dar resposta ao crescimento populacional no bairro. Primeiro sem tecto, as lavadeiras apanhavam chuva e frio para conseguir pôr a roupa branca, esfregando-a no grande tanque em alvenaria. Depois, lá foi assente o tecto. A pouco e pouco, as máquinas de lavar a roupa começaram a entrar nas casas dos lisboetas. As lavadeiras que lavavam roupa para fora também começaram a desaparecer. 

“À Descoberta do Lavadouro”

Na longa vida do Lavadouro de Carnide, este espaço já serviu para várias coisas, incluindo concertos de rock. Até que em 2011, o Teatro do Silêncio, companhia fundada por Maria Gil em 2004, começou a ter ali o seu lugar cativo. E a abri-lo à comunidade, aproximando-a da prática artística.

“À Descoberta do Lavadouro” — assim chamaram a esta visita encenada — quer também recuperar a memória destes lugares que nos lembram as “formas colectivas de partilhar a água, de habitar os espaços públicos e até de convívio”, diz Maria. Sobretudo para os miúdos que ali passam e não fazem ideia do que é e para que serve aquela casinha coberta por telha Marselha sobre traves de madeira.

A junta de Carnide acabou por ceder o espaço ao Teatro do Silêncio, com a condição de aquele continuasse a ser um espaço de lavadouro, ainda que os tanques estejam quase todos vazios e os estendais sem roupa a secar.

As guias da visita são Mariana Marques e Jéssica Lopes, alunas finalistas do curso de Teatro da Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha. Como projecto final de curso, o Teatro do Silêncio desafiou-as a criarem as suas peças a partir do espaço. O resultado é uma brincadeira com o passado, onde ao longo de uma hora se tecem cordas e se penduram memórias, ao mesmo tempo que se apresentam novas opções para o espaço.

Para Mariana, de 22 anos, o lavadouro é como uma tela em branco. “Procurei pensar além da função óbvia do lavadouro. Procurar um universo diferente, em que há um sótão de bonecas. E utilizar também a ideia da pintura, da tela branca. Queria pensar se o branco é uma limitação, se é o vazio, ou se é uma tela infinita para a criação”, explicou. Já Jéssica, 21 anos, foi recolher histórias junto das senhoras das Calda das Rainhas, onde antes havia um tanque grande e se lavavam os panos. “Mas depois apareceram tanques para lavarem individualmente e muitas vezes as senhoras pegavam-se à bulha”, recorda. 

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A crise 

Hoje, além da Dona Rosa, há uma senhora que mora no prédio em frente e que tem máquina de lavar em casa que ainda ali aparece com a roupa para lavar porque diz que fica melhor lavada. Uns dias antes de termos assistido a um ensaio desta visita, um homem tinha aparecido para lavar uns tapetes porque ia arrendar a casa. 

Apesar de o lavadouro ter cada vez mais cara de museu, ali quer-se também desfazer essa ideia “do lado exótico” e “engraçado” de lavar a roupa na cidade como nas aldeias. Nos anos da crise, recorda Maria Gil, a procura por aquele espaço aumentou porque era preciso poupar na água e na luz. Ou, às vezes, não havia dinheiro para reparar a máquina que se avariara. 

“Acho que quando há essa aproximação do lado pitoresco, se esquece que estas pessoas, sobretudo mulheres, que vêm para aqui lavar roupa à mão não têm máquina de lavar em casa”, nota Miguel Bonneville que partilha com a Maria a direcção artística do Teatro do Silêncio. “Não se sabe se voltar uma crise como a de 2008 elas voltam a aparecer”.

Quem quiser descobrir as estórias e memórias deste lavadouro, pode fazer uma marcação através do 914632675 ou do email producao.teatrodosilencio@gmail.com. A visita custa três euros e a próxima (e última) sessão está marcada para 30 de Junho, às 11h. No final, desafia-se a pôr as mãos na água fria para aprender a lavar a roupa à mão.