Um Ramadão na escola

Só quando vemos a mesquita central cheia de homens curvados a orar, ou a celebração do fim do Ramadão num espaço improvisado a céu aberto povoado de umas largas centenas de pessoas, é que nos apercebemos da invisibilidade social desta prática religiosa no meio do ritmo frenético de Lisboa.

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Assisti, há dias, ao documentário Um Ramadão em Lisboa. A cadência das orações deixou-me um eco persistente nas têmporas e o colorido dos pratos preparados para o iftar ​(a refeição ingerida durante a noite com a qual se quebra o jejum diário durante o Ramadão) pareceu impregnar-me a roupa de aromas agridoces. Esta produção sinestésica, levada ao IndieLisboa por um colectivo de antropólogos da Nova FCSH, guia-nos pela experiência do jejum — durante o Ramadão de 2018 — de pessoas muçulmanas a viver e a trabalhar na área metropolitana de Lisboa, a maioria com negócios próprios, entre os quais restauração.

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Assisti, há dias, ao documentário Um Ramadão em Lisboa. A cadência das orações deixou-me um eco persistente nas têmporas e o colorido dos pratos preparados para o iftar ​(a refeição ingerida durante a noite com a qual se quebra o jejum diário durante o Ramadão) pareceu impregnar-me a roupa de aromas agridoces. Esta produção sinestésica, levada ao IndieLisboa por um colectivo de antropólogos da Nova FCSH, guia-nos pela experiência do jejum — durante o Ramadão de 2018 — de pessoas muçulmanas a viver e a trabalhar na área metropolitana de Lisboa, a maioria com negócios próprios, entre os quais restauração.

Só quando vemos a mesquita central cheia de homens curvados a orar, ou a celebração do fim do Ramadão num espaço improvisado a céu aberto povoado de umas largas centenas de pessoas, é que nos apercebemos da invisibilidade social desta prática religiosa no meio do ritmo frenético da capital portuguesa. No fundo, talvez porque o sentido seja precisamente esse: jejuar do mundano para a mais plena introspecção do sagrado. Privilégios do acolhimento num estado laico, tolerante — com episódios pontuais de discriminação religiosa e étnica.

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Saí do Cinema São Jorge a pensar nas “personagens” que a câmara não seguiu, naqueles cujos patrões, menos conscientes dos seus rituais religiosos, não abrem excepções a quebras de ritmo ou a dolências inusitadas, expectáveis em mulheres e homens que estão sem comer e sem beber cerca de 15 horas por dia.

Lembrei-me dos adultos a quem dei aulas à noite, no ano lectivo anterior. Em todas as minhas turmas havia mulheres e homens muçulmanos que, em alguns casos, ultrapassavam em número o exercício de outros cultos. Já era comum nesta escola, por isso as/os colegas da “casa” não estranhavam e até davam conselhos aos novatos como eu sobre como reagir às necessidades destes formandos. Numa dessas noites, quando os formandos reiteraram o pedido de ausência da aula para irem comer e beber alguma coisa, sugeri que fizéssemos todos o intervalo aquando da quebra do jejum marcada no calendário islâmico para aquele dia. Junto ao bar, alguns dos colegas muçulmanos reuniam-se em mesas mais afastadas, uns de joelhos, outros de pé, a terminar a oração de agradecimento por mais um dia de vida e sacrifício por Deus.

Mal o relógio deu o sinal, as expressões de alívio e de alegria instalaram-se à mesa, começando a refeição pelas tâmaras e frutos secos trazidos de casa, para depois se atirarem às “buchas” compradas no bar da escola — o banquete tradicional ficará para o fim-de-semana. As mulheres chegam depois, vindas de uma sala contígua, não se juntam aos homens e trazem comida de casa. Não comem tanto nem falam tão alto, parecem mais cansadas das longas horas de serviços domésticos, das arrancadas nos transportes públicos e das responsabilidades familiares, mas nunca, nessa dolência, lhes perscrutei uma ruga de queixume.

Como se lê na explicação do Ramadão publicada na página da Associação Ahmadia do Islão em Portugal, o jejum, um dos cinco pilares do islamismo, é obrigatório para cada muçulmano adulto. Não é incomum, no entanto, encontrarmos crianças e jovens que também o fazem, precocemente convictos da fé da sua origem e descendência.

Os irmãos Baldé, guineenses, chegaram à escola no final do segundo período. Foram integrados no 10.º ano e frequentam as minhas aulas de Português Língua Não Materna. São tão discretos que quase não se dá por eles, mas há sinais que fazem soar alarmes, sobretudo o sono e um certo alheamento nas aulas do meio-dia. A mana traz um lenço amarrado à cabeça — quando a conheci, envergava uma longa e espessa cabeleira postiça, como as expostas nas montras do Centro Comercial Babilónia. Disse-me que estava a fazer o jejum só porque lhe perguntei. “O início é difícil, mas depois habituamo-nos. Aguentamos por respeito”, dizia, enquanto me mostrava as horas de oração rigorosamente marcadas no calendário. “Hoje o iftar é às 20h43. Não consigo comer muito, como o suficiente… E chega bem.”

O Abdullah é um menino sírio do 7.º ano a viver o seu segundo Ramadão na escola portuguesa. Num português já intermédio, explica-me a diferença do jejum em Portugal. “Na Síria não há aulas durante o Ramadão e os dias acabam mais cedo, às 17h30, mais ou menos, por isso é mais fácil. Agora, com calor, quando vejo os colegas a beber água… é difícil, mas aguento. Eu sei que há meninos que dizem que fazem jejum, mas depois vão beber e comer escondidos… Eu não. A minha família não me obriga, eu faço porque quero e respeito. E é só um mês num ano de 12, o que custa?”

Os argumentos parecem perder força perante os testemunhos, mas continua a ouvir-se de tudo dos educadores da nossa escola democrática. Os que se indignam com a “violência a que as famílias sujeitam as crianças”; outros que, desvalorizando, aligeiram as tarefas destes alunos nesses dias; e outros ainda que permanecem no marasmo da indiferença. Ao acolhermos a diversidade nas nossas escolas, deveríamos estar a aceitar conhecê-la e respeitá-la, intervindo no que nos parecer excessivo e desafiando as mentalidades e os formatos unilaterais estabelecidos, através da formação contínua e da renomeação e actualização do currículo da Educação Moral e Religiosa, mesmo enquanto disciplina opcional. Aproveitemos a lufada de ar fresco da Cidadania e Desenvolvimento para fazer da escola toda um espaço de diálogo entre diferenças, nomeadamente o inter-religioso.

Resta-me desejar um feliz Eid-ul-Fitr a todos os meus alunos e amigos muçulmanos, na mesma medida em que me desejaram a mim, em Abril, uma Páscoa feliz, mesmo que tenha sido na suposição do meu catolicismo “não praticante”, ou na projecção que de mim fazem enquanto representante dessa maioria religiosa. Mesmo que assim seja, haverá sempre alguma coisa a ligar-nos nuns votos de boas festas e era isso que deveria ser promovido na escola.

Eid Mubarak! Boas festas!