Morreu Manuel Graça Dias, o arquitecto arquitectonicamente incorrecto

Graça Dias era um dos grandes comunicadores da arquitectura portuguesa. Com uma obra heterodoxa, interrogou como poucos a nossa paisagem urbana, não só com os seus edifícios, mas também com uma vida dedicada à divulgação da arquitectura.

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Manuel Graça Dias, um dos mais eclécticos e coloridos arquitectos portugueses da sua geração, morreu este domingo à noite no hospital da CUF, em Lisboa, de um cancro no pâncreas, disse ao PÚBLICO Egas José Vieira, o seu sócio no atelier Contemporânea. Tinha 65 anos.

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Manuel Graça Dias, um dos mais eclécticos e coloridos arquitectos portugueses da sua geração, morreu este domingo à noite no hospital da CUF, em Lisboa, de um cancro no pâncreas, disse ao PÚBLICO Egas José Vieira, o seu sócio no atelier Contemporânea. Tinha 65 anos.

Nos anos 80 e 90 do século passado, Graça Dias ajudou a construir uma Lisboa cosmopolita, criando alguns dos espaços de que precisava uma geração com novos hábitos de consumo, do restaurante italiano Casanostra, no Bairro Alto, à Loja Ana Salazar, na Rua do Carmo.

Com o Pavilhão de Portugal na Exposição Universal de Sevilha, em 1992, o arquitecto mostrou, lá fora e cá dentro, que o país podia ser alegre e menos formal, coroando o edifício com um lettering em que brincava com a palavra “Portugal”. Nesses anos em que desenvolveu “um pós-modernismo português”, Manuel Graça Dias emergiu como “a figura central” de uma nova geração de arquitectos, explica Jorge Figueira, crítico de arquitectura do PÚBLICO.

Trabalhou grande parte da sua vida profissional com Egas José Vieira, formando uma dupla de arquitectos, quando muitos da sua geração preferiram ter um atelier em nome próprio. O gosto pelo trabalho em equipa e a generosidade, que fez dele um professor que muitos estudantes universitários recordam, era uma das características da sua personalidade. Era actualmente professor na Faculdade de Arquitectura do Porto e na Universidade Autónoma de Lisboa.

Foi em 1990 que Graça Dias e Egas José Vieira abriram o atelier Contemporânea em Lisboa, actualmente situado na Rua Borges Carneiro, de onde saíram obras como a sede da Associação dos Arquitectos Portugueses (1991), em Lisboa, o Teatro Municipal de Almada (2005), a Escola de Música, Artes e Ofícios de Chaves (2004-2008) e, mais recentemente, a requalificação do Teatro Lu.Ca (2018), também em Lisboa.

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Teatro Azul, em Almada F+G Fernando Guerra
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Graça Dias no Teatro Azul

A cor como matéria da arquitectura

Num país em que a cultura arquitectónica privilegia a parede branca ou as tonalidades discretas emprestadas pelos materiais, Graça Dias e o atelier Contemporânea ergueram um Teatro Azul em Almada, pintaram a pequena fachada do Teatro Lu.CA de vermelho-forte ou introduziram um verde-água tropical no restaurante Casanostra, porque a cor também é matéria da arquitectura, sendo capaz de emprestar novos sentidos aos edifícios e à cidade. O arquitecto sublinhava, no entanto, que a cor não servia para colorir os edifícios. “Cada arquitectura tem a sua razão de pintura; o que pouco tem que ver com as cores dessa pintura”, escreveu num texto intitulado Cores, reunido no livro de crónicas Vida Moderna, publicado em 1992.

Era um grande comunicador, tendo feito dos poucos programas de arquitectura que chegaram à televisão em Portugal — na TV2, de 1992 a 1996. Escreveu regularmente em jornais generalistas, como O Independente ou o Expresso, mas também em revistas especializadas como a Arquitectura Portuguesa ou o Jornal dos Arquitectos, de que foi director por duas vezes. Falava de casas de emigrantes como a nova arquitectura popular portuguesa, de guindastes, de tectos falsos, de pormenores que poucos viam, sintetizados nos expressivos desenhos que acompanhavam regularmente os seus artigos na imprensa.

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“Há um momento em que Manuel Graça Dias é imbatível, no sentido em que ele comunica, fala, escreve e desenha de um modo que é diferente”, afirma Jorge Figueira, tese que defende no seu livro A Periferia Perfeita, pós-Modernidade na Arquitectura Portuguesa (1960-1980). Nesse momento, na passagem dos anos 80 para os anos 90, “quando está a fazer as primeiras obras, quando escreve em O Independente, quando faz o Pavilhão de Sevilha, ele é o arquitecto mais alegre, mais radioso, mais interveniente, mais arguto”.

Mostra a uma geração de jovens estudantes e de arquitectos recém-formados que há uma forma diferente de ser arquitecto e de fazer arquitectura portuguesa. “Coloca o quotidiano na arquitectura, o pequeno episódio, as incongruências, aquilo que não é necessariamente bonito e aceite pelo bom gosto. Ele coloca tudo isso como matéria da arquitectura, passível de ser lido e abraçado pelos arquitectos”, continua Jorge Figueira.

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Desenho para uma das suas crónicas no jornal O Independente, publicada no livro Vida Moderna: retrato de arquitecto com gengivas de betão num texto sobre o material

O tema mais óbvio é a casa dos emigrantes, com Manuel Graça Dias a trazer serenidade ao debate num artigo sobre o assunto logo em 1985, num número do Jornal de Letras. “É óbvio que ele não inventa o debate de que os erros e as incongruências também fazem parte da arquitectura e da vida. Tudo isso é muito pensado antes pelo Robert Venturi, de Aprendendo com Las Vegas e de Complexidade e Contradição em Arquitectura, e pelo Manuel Vicente, o seu grande mestre com quem trabalhou em Macau. Tinha essa filosofia de relação crítica mas heterodoxa com o mundo. O arquitecto tinha de recompor, de recolocar, não tinha propriamente de inventar nada de novo.”

O pavilhão de Sevilha

Manuel Carlos Sanches da Graça Dias nasceu em Lisboa a 11 de Abril de 1953, tendo vivido em Moçambique em criança: são vivas as suas memórias de “uma infância com arquitectura moderna”, porque na cidade nova que era Lourenço Marques, a actual Maputo, morava com a família num edifício de 11 andares desenhado por Pancho Guedes, outro heterodoxo da arquitectura portuguesa. Forma-se em 1977 na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa (ESBAL), no ano em que Charles Jencks anunciou o fim do Movimento Moderno, com a obra The Language of Post Modern Architecture, como escreve Ana Vaz Milheiro num itinerário pela obra do atelier Contemporânea, publicado pelo PÚBLICO e pela Ordem dos Arquitectos.

É na ESBAL, onde está quando se dá a revolução de Abril, que conhece Manuel Vicente, o professor que lhe vai dar o primeiro emprego em Macau, onde está de 1978 a 1981. É com o mestre e com Helena Rezende que publica o livro Macau Glória, a Glória do Vulgar, uma espécie de Aprendendo com Las Vegas transposto para Macau, porque Macau está para o pós-modernismo em Portugal, como Las Vegas para o pós-modernismo internacional, defende Jorge Figueira.

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Desenho do Pavilhão de Sevilha

Em Chaves, longe dos centros onde tradicionalmente se produz a cultura arquitectónica, longe de Lisboa e do Porto, faz várias obras na década de 80. Desenha uma piscina em forma de ovo estrelado para o Edifício Golfinho, já um híbrido com uma planta curva a caminho do pós-modernismo. Mas a obra que melhor simboliza os primeiros anos em que já trabalha com Egas José Vieira, onde sintetiza o tal pós-modernismo português, tudo o que tinha vindo a pensar e a desenhar, é o Pavilhão de Sevilha, em que combina, sem hierarquias, geometrias eruditas e grafismos comunicantes, elementos arquitectónicos e decorativos. “É design, é arquitectura, é colagem, é pintura. Não houve nada que ficasse de fora. Isso provocou um certo espanto, porque as nossas representações eram sempre cerimoniais, por serem clássicas ou por ser modernas. O Manuel Graça Dias mostrou ali uma disrupção, um jogo arquitectónico, que nunca voltou a acontecer. Nunca depois Portugal foi representado com esse lado divertido, espontâneo, sem pedir licença.”

Tal como o pavilhão, a sede da Ordem dos Arquitectos também resulta destas colagens. “Há arquitectos que gostam de retirar coisas, ele está interessado em colocar coisas. Mas Graça Dias não era um homem da história clássica, partia antes da arquitectura moderna, ampliando-a com a cultura popular e pop. Ampliava o léxico e o modo de estar moderno, criando um conforto textural e óptico”, afirma Jorge Figueira.

Em Dezembro de 2012, o PÚBLICO esteve no atelier de Manuel Graça Dias. Reportagem de Joana Bourgard e Isabel Lucas

O crítico de arquitectura destaca ainda a força dos seus interiores. “O desenho de interiores dele é sempre extraordinário, sempre cheio de ilusões ópticas, de pequenos detalhes, para criar a sensação de que se está num espaço arquitectónico [autónomo]. O Casanostra é um sítio português, africano, exótico, moderno. Neste restaurante do Bairro Alto, há um certo tropicalismo e essa hibridez, que tem qualquer coisa de antecedente africano, onde ele viveu, não vem só dos anos em Macau.”

No final dos anos 90, Ana Vaz Milheiro, também crítica do PÚBLICO, é da opinião que “os vestígios da presença figurativa pós-moderna se neutralizam”, intensificando-se o diálogo com o contexto, como escreve no itinerário dedicado ao atelier. 

Com o Teatro Municipal de Almada, uma obra da maturidade, Graça Dias contou, numa entrevista ao PÚBLICO, que mais do que criar um objecto elegante quiseram completar o que os subúrbios de Lisboa lhes davam. “Gosto deste ambiente de lojas de colchões, garagens. Não podemos achar que tudo isto é feio e viver para dentro.” Não quiseram criar, arrogantemente, uma praça a anunciar que estava ali um teatro, mas fizeram o equipamento cultural ir ter com a cidade que estava à volta.

Nessa cidade feita de fachadas que mais parecem traseiras, os espectadores são convidados a sair do teatro directamente para o passeio em que todos passam, ajudando a consolidar a vida urbana. No século XXI, o atelier mantém a ironia das décadas anteriores e, se o Teatro Azul não deu origem a uma praça em Almada, conseguiu, pelo menos, criar um beco dos Artistas. 

“Mesmo no Teatro de Almada, uma obra já com outra segurança projectual, ele nunca abandona um desassossego e uma irrequietude. Ele pode ser professor da Universidade do Porto, pode deixar de escrever como escrevia nos anos 80, mas mantém-se fiel à sua visão enquanto arquitecto. Isso também é muito claro no Teatro Lu.Ca. No sentido de assumir um lado pictórico, cenográfico, textural, preenchido, não arquitectonicamente correcto”, diz Jorge Figueira. 

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Requalificação do Teatro Lu.Ca, na Calçada da Ajuda, em Lisboa FG+SG Fernando Guerra

Noutra entrevista, desta vez ao jornal Expresso, Manuel Graça Dias explicou a origem do nome Contemporânea com que assinam os projectos: “O nome do atelier é uma homenagem a Fernando Pessoa, que teve uma revista chamada Contemporânea. É um nome que traduz a nossa vontade de nos mantermos ligados ao que ocorre à nossa volta, não nos fixando num único modo ou maneira de ver o mundo.” 

Odiosamente pós-modernos?

Em 1997, Manuel Graça Dias é convidado para dar aulas na Faculdade de Arquitectura do Porto — onde se doutorou em 2009 com a tese Depois da Cidade Viária —, suavizando a separação entre Porto e Lisboa, notória desde o início dos anos 80. “Esse convite era uma coisa impensável uns anos antes. Foi um grande volte-face”, explica Alexandre Alves Costa, historiador da arquitectura mais ligado à Escola do Porto. “O Manuel Graça Dias tinha uma capacidade de observação muito positiva, muito saudável, em relação àquilo que não era parecido com ele. Foi sempre uma pessoa extremamente aberta, com uma lucidez inacreditável na crítica de arquitectura que fazia à gente do Porto, a Álvaro Siza e a Eduardo Souto de Moura, porque não era um militante ferrenho do pós-moderno contra os outros, mas uma pessoa muito universalista. O Manuel fazia de tudo a sua cultura arquitectónica.”

Alves Costa lembra a polémica à volta da exposição Depois do Modernismo, que teve lugar em Lisboa em 1983, na Sociedade Nacional de Belas-Artes (SNBA), em que se revelou toda uma geração, de Graça Dias a Carrilho da Graça, passando por nomes como Margarida Grácio Nunes, Fernando Sanchez Salvador, João Vieira Caldas ou António Belém Lima. “Nós reagimos de uma forma violenta em relação à exposição, não participámos e criou-se uma situação de uma certa tensão, ideológica, daquilo que devia ser a arquitectura. Em Lisboa houve uma adesão a um pós-moderno culto, do Aprendendo com Las Vegas, mas no Porto isso era-nos profundamente alheio.”

Como recordou Graça Dias no Jornal dos Arquitectos em 1986, citado na obra de Jorge Figueira: “Ficámos, para alguns, odiosamente pós-modernos, neo-historicistas, cenográficos.”

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Restaurante Casanostra, no Bairro Alto, em Lisboa Atelier Contemporânea

Alves Costa explica que com o tempo foi mudando a sua opinião em relação à obra do atelier Contemporânea: “Depois de um primeiro momento de tensão, passámos a uma espécie de paixão recíproca. Afligia-me não gostar da obra dele, quando estávamos de acordo em termos de debate.” Mas passou a vê-la de uma maneira completamente diferente, quando teve de escrever sobre ela. “Eram obras de um certo realismo, porque ele considerava que o progresso levava naturalmente a uma certa degradação que devia ser integrada na sua obra. Achei que era uma visão muito positiva em relação à cultura portuguesa – uma posição de continuidade com a realidade.”

Manuel Graça Dias chega à faculdade do Porto no momento em que Álvaro Siza se reforma, por limite de idade, e já na sequência da saída de Fernando Távora. “Vem para reinventar a disciplina de Teoria Geral da Organização do Espaço. Era uma possibilidade de abrir a escola a um olhar mais vivo e contemporâneo”, explica André Tavares, responsável pela programação da Garagem Sul do Centro Cultural de Belém.

No contexto da arquitectura portuguesa, a obra de Graça Dias é muito atrevida e singular, continua este arquitecto e curador: “Atrevida, na medida em que tem vontade de dar passos em frente, de olhar para as coisas e abrir a arquitectura a outros caminhos, a outras ideias. Vejo a obra como uma espécie de caldeirão que acolhe muitas coisas e junta muitos sinais contraditórios. Consegue fazer sínteses claras, edifícios com uma grande presença e peso simbólico, sem esconder essas contradições.”

Para João Luís Carrilho da Graça, que entrou para a ESBAL no mesmo ano que Graça Dias, a exposição da SNBA foi um momento de ruptura e de libertação com a rotina do chamado “Estilo Internacional”: “Foi a possibilidade de encarar a arquitectura de uma forma mais ecléctica, procurando uma comunicação mais directa com as pessoas.” Isso, na sua essência, foi o que Graça Dias sempre fez e continuou a fazer: “Tenho uma enorme admiração por ele. Ele teve sempre uma posição muito destacada, intelectualmente muito brilhante, partindo desta hipótese de interacção directa com as pessoas, com coisas que podem ser banais, mas são depois sublimadas em possibilidades de arquitectura mais intensa e interessante.”

O velório realiza-se esta segunda-feira à tarde na Basílica da Estrela, em Lisboa, a partir das 18h. O funeral está marcado para as 17h de terça-feira no Cemitério dos Olivais, também em Lisboa.