Nas ruas e entre os seus apoiantes, cresce a pressão sobre Bouteflika

Dezenas de milhares de pessoas protestam contra a candidatura do Presidente da Argélia, que está hospitalizado em Genebra num estado muito frágil.

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A conta-gotas, os apoios do Presidente argelino, Abdelaziz Bouteflika, começam a falhar, ao mesmo tempo que o político de 82 anos está num hospital de Genebra, e que nas ruas aumenta a oposição dos argelinos à sua candidatura a um quinto mandato, que não está em condições de cumprir.

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A conta-gotas, os apoios do Presidente argelino, Abdelaziz Bouteflika, começam a falhar, ao mesmo tempo que o político de 82 anos está num hospital de Genebra, e que nas ruas aumenta a oposição dos argelinos à sua candidatura a um quinto mandato, que não está em condições de cumprir.

O estado de saúde de Bouteflika é tal que o embaixador argelino em Paris se viu obrigado a assegurar que o Presidente está vivo, nota o diário norte-americano The New York Times.

As manifestações têm-se sucedido, intensificando-se às sextas-feiras com dezenas de milhares de pessoas nas ruas a pedir ao Presidente que não se recandidate. O seu quarto mandato foi marcado pelo Acidente Vascular Cerebral que sofreu no ano anterior, 2013, e nestes últimos anos Bouteflika apareceu apenas meia dúzia de vezes em público. Mas apesar disso, é o candidato do regime, e o seu gestor de campanha apresentou no domingo a recandidatura do Presidente que está no poder desde 1999.

A analista Dalia Ghanem Yazbeck, do Carnegie Middle East Center de Beirute, esteve nas manifestações da semana anterior e conta ao PÚBLICO, por telefone, que ficou impressionada com a diversidade. “Vi pessoas de todas as idades, de várias regiões, de várias classes e vários grupos profissionais, vi estudantes, advogados, médicos, mas também desempregados”, enumera.

O que une os manifestantes não é um apoio à oposição - “Esta é muito fraca na Argélia”, nota Ghanem Yazbeck - e não é um projecto político comum. Sob o nome “Cidadania”, o que todos recusam é continuar a ter um “presidente-numa moldura”, um dos nomes que chamam a Bouteflika por este aparecer sempre representado em imagens nas cerimónias oficiais, mas muito raramente em pessoa.

Quem manda?

Os manifestantes questionam o sistema que apoia Bouteflika – e que decide o que se passa na Argélia. “Não tenho maneira de saber quem é que realmente manda no nosso país, é esse o problema”, dizia um manifestante à emissora britânica BBC.

“Neste momento é claro que já não é Bouteflika quem está a gerir o país”, diz Dalia Ghanem Yazbeck. Muito menos claro é quem é que está. “O regime é muito complexo e muito opaco, controlado por diferentes estruturas e círculos de poder, cada um com os seus interesses diferentes, mas também interdependentes”, nota. “São os burocratas da FLN [Frente de Liberação Nacional, o partido de Bouteflika], os militares, os líderes políticos, os grandes empresários….”

O facto de Bouteflika ser o candidato mostra que estas facções diferentes não conseguem chegar a acordo em relação a um sucessor. “Porque quem vier a seguir terá de satisfazer os interesses de todos estes círculos de poder”, explica a analista. “A Argélia é um país muito grande e com muitos recursos, e estas pessoas andam a viver disso há mais de 20 anos.”

Jogar com o medo

Firmemente do lado de Bouteflika, o chefe do Exército, Ahmed Gaid Salah, prometeu garantir a estabilidade do país, criticou aqueles que em sua opinião “querem regressar aos anos dolorosos” da guerra civil dos anos 1990 em que morreram cerca de 200 mil pessoas. O responsável, que é ainda o vice-ministro da Defesa, pediu aos argelinos para “erguerem uma muralha contra tudo o que possa deixar a Argélia exposta a ameaças imprevisíveis”.

Reiterando este ponto, o primeiro-ministro, Ahmed Ouyahia, evocou o risco de violência: “Na Síria os protestos começaram com flores e acabaram em sangue”, avisou.

Na Síria, a violência partiu do regime, que esmagou com violência as manifestações pacíficas em 2011. No caso da Argélia, Dalia Ghanem Yazbeck não acredita que possa haver violência: os manifestantes têm feito dos gritos de “silmiya, silmiya" (“pacíficos, pacíficos”) uma imagem de marca, e, do lado das autoridades, “a recordação de 1988”, quando houve centenas de mortos após a repressão de motins, está também presente. “O Exército não cometerá o erro de disparar sobre a multidão”, acredita.

E estas manifestações têm reunido apoios de cada vez mais sectores tradicionalmente próximos de Bouteflika, diz o Le Monde. “Há deserções significativas em organizações ligadas ao regime”, diz o diário francês. “Apoiantes do Presidente que eram muito presentes estão agora pouco visíveis ou retiraram mesmo o seu apoio e com estrondo”.

Deserções

Quem fez a retirada mais estrondosa foi a organização dos antigos combatentes da guerra da independência, a Organização Nacional dos Mujahedin (ONM). Elogiando o “comportamento civilizado” dos manifestantes, a ONM critica as instituições por não estarem “à altura das aspirações legítimas do nosso povo”. Mais, critica a aliança “contra-natura” que beneficiou pessoas que “graças às suas ligações no seio da hierarquia no poder pôde acumular fortunas consideráveis em tempo recorde”, cita o diário francês.

Mas mesmo entre os visados por esta crítica, o poderoso Fórum dos Líderes das Empresas (FCE), organização liderada por Ali Haddad, próximo de Said Bouteflika, irmão do Presidente, houve apoios às manifestações. Alguns membros, incluindo dois antigos líderes, afirmaram “não poder continuar surdos à contestação popular”, acrescentando que aderiam “totalmente” ao protesto.

E finalmente uma associação de antigos elementos dos serviços secretos da FLN, dirigida por Dahou Ould Kablia, que foi ministro do Interior de 2010 a 2013, sublinhou que o quinto mandato de Bouteflika “já foi rejeitado pelo povo”. A associação, ainda segundo o jornal Le Monde, apontou o dedo a “manobras ditatoriais para perpetuar um sistema que atingiu o seu limite” e que está a “arriscar conduzir o país a uma aventura e a perigos graves”.

Pelo seu lado, Ordem dos Médicos emitiu um comunicado alterando que passar um parecer médico falso, mesmo que a um candidato presidencial, é um atentado à deontologia, e na União Geral dos Trabalhadores Argelinos, sindicato que apoia o quinto mandato de Bouteflika, tem havido saídas de trabalhadores e apelos a uma reversão de posição.

A emissora argelina privada Ashourouq TV noticiou ainda demissões de vários deputados da FLN para se juntarem aos protestos.

Presidente na Suíça

O regime poderá estar a encarar a hipótese de abandonar a candidatura de Bouteflika, tanto face a esta contestação como face ao seu estado de saúde, diz o Monde.

Segundo um artigo do jornal Tribune de Genève, o Presidente, a ser tratado num hospital privado em Genebra (Suíça), está num estado de “risco de vida permanente” sobretudo devido a degradação neurológica após o AVC, embora não tenha uma “doença mortal a curto prazo”.

Os manifestantes têm oscilado entre o desespero pela situação que classificam como “uma farsa” e o humor negro. “Respeitem os mortos. Enterrem-no, não o elejam”, dizia um cartaz de um manifestante. No Facebook havia uma iniciativa pedindo aos argelinos para telefonarem para o hospital a pedir notícias do seu Presidente e enviando recados. O hospital tem recebido dezenas de telefonemas.

Analistas antecipam que, se as manifestações continuarem, o regime possa sacrificar o seu candidato por uma opção mais consensual. “O poder ainda tem uma hipótese de evitar o pior”, diz Dalia Ghanem Yazbeck, que espera um novo candidato, resultado “de um acordo entre os diferentes estratos que compõem o poder”.

A analista considera que o recuo terá mesmo de vir do lado do regime. “Não acredito que os manifestantes sejam os primeiros a ceder.”