“Devíamos aproveitar o ‘Brexit’ para repensar a Comissão Europeia”

Comissário europeu para a Investigação, Ciência e Inovação desde 2014, prestes a terminar o mandato, Carlos Moedas foi o subsecretário de Estado responsável pelo acompanhamento do programa da troika no Governo anterior. Hoje, reconhece que a Comissão também é vítima da mudança de direcção do pêndulo do poder — na Europa, para o lado dos governos; no mundo contra o multilateralismo. Espera um milagre na 25.ª hora antes do “Brexit”. Tudo o que a Europa pode fazer é minorar o desastre que é a saída de um país com a importância do Reino Unido.

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A Comissão Europeia tem as suas responsabilidades na crise que a Europa vive, mas a culpa maior é dos países-membros. Carlos Moedas — quase cinco anos com a tutela da Investigação, Ciência e Inovação — responsabiliza também os governos da União pela cultura de um discurso “redondo” que prevalece entre os funcionários de Bruxelas. A crise empurrou o pêndulo para o lado dos governos. Hoje, defende Moedas, é necessário clarificar quais são poderes e as competências de Bruxelas, para que os cidadãos não se enganem. Defende um multilateralismo que ultrapasse a mera lógica dos Estados. Considera que a Europa não pode continuar a ser ingénua em relação à globalização. Acredita que se poderá afirmar no domínio da Ciência contra a preponderância americana e a rápida recuperação chinesa. Aponta o dedo aos populistas que utilizam o Parlamento Europeu para combater a Europa. E teme um revés dos partidos pró-europeus.

A Europa vive uma crise existencial profunda, creio que já ninguém nega esta realidade, mesmo Bruxelas com o seu tradicional optimismo. Em que medida é que a Comissão também é responsável por ela? A forma como trabalha, a distância que criou em relação aos cidadãos.
Creio que a Comissão tem as suas responsabilidades, mas acho que as grandes responsabilidades do momento que vivemos são dos próprios países, e não da Comissão. Se tivesse que dividir culpas, a minha experiência de quase cinco anos, e tentando ser o mais neutral possível, diz-me que os países têm uma grande responsabilidade. Os países membros quiseram sempre criar uma estrutura de funcionalismo público europeu que não lhes fizesse sombra. Trabalho com os funcionários públicos da Comissão, que são excelentes, mas foram todos treinados durante 20 anos para não fazer sombra aos países. Como é que não se faz sombra aos países? Tendo um discurso redondo, que as pessoas não percebem. Isso é um bocadinho o drama…

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Da Comissão?
Da Comissão, na própria forma como as pessoas comunicam. São anos e anos a treinar as pessoas para falar assim. Creio que o presidente [Jean-Claude] Juncker quando defendeu uma Comissão mais política a ideia dele era tentar mudar esta realidade.

Mas não conseguiu.
Não, não conseguiu. A Comissão e as instituições europeias são como um petroleiro. E não se vira um petroleiro facilmente. Juncker queria mudar de direcção. Mas as resistências, como sabe, foram muitas.

Mas reconhece que esse hábito da Comissão de dizer que a culpa não é dela, mas dos governos, é já muito antigo. Já o ouvi mil vezes: os governos atribuem à Comissão o que corre mal e a si próprios o que corre bem. Não lhe parece que já não chega como explicação? É isso que explica que a Comissão tenha perdido protagonismo, relevância?
Percebo…

Também é verdade que as sucessivas revisões dos tratados foram reduzindo o poder da Comissão a favor do Conselho Europeu e até do Parlamento Europeu.
Isso também é verdade. Mas é mesmo assim. Vai no sentido do que disse.

O problema é que hoje, em muitos países da União, os cidadãos revoltam-se contra as elites, incluindo a de Bruxelas, distante, cujo poder lhes parece ilegítimo. A Comissão aí tem alguma responsabilidade, com a linguagem que usa: “Um país não cumpriu? É sancionado.”
Sim, sim, sim. Sem dúvida! Mas repare, houve países europeus que sempre quiseram que a Comissão fosse apenas a guardiã dos tratados.

E os executasse.
E que fosse executora. Vimos isso durante a crise, aqui em Portugal… E eu vivi isso por dentro, como sabe. Aquelas tentativas de [aplicar] multas a Portugal e Espanha, que não faziam sentido nenhum, por exemplo. Mas havia muitos países que diziam: “É essa a vossa função, ponto final.” Ou seja, se os países querem que a função seja essa, só vamos criar maior distância entre a Comissão e as pessoas.

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"A Comissão tem de ser mais assertiva na comunicação e deve haver uma clarificação dos seus poderes"

E porque é que a Comissão não contraria isso?
Acho que a Comissão tenta contrariar, mas nós temos aqui dois efeitos pendulares. Temos um efeito de pêndulo, que é o regresso a um poder mais intergovernamental e menos comunitário, com a crise financeira. Foi o efeito da crise, ou seja, durante a crise os países disseram: “Bom, a Comissão não está a conseguir resolver o problema. Então é melhor retirarmos o problema à Comissão.” Penso que a Comissão Juncker já apanhou esse pêndulo a virar em direcção aos governos. Se posso dizer assim, levámos com esse pêndulo na cabeça e muitas decisões posteriores à crise foram de natureza intergovernamental, por exemplo, o Mecanismo de Supervisão Europeu. E a esse movimento pendular junta-se um outro, global, contra o multilateralismo. Visitei recentemente a UNESCO, em Paris, tive uma reunião muito boa com a senhora [Audrey] Azoulay, que é uma pessoa extraordinária. E depois, no caminho para o local onde deveria discursar, naquele edifício magnífico, que já deve ter visitado, com quadros do Picasso e tudo o que há de melhor, simbolizando a força do multilateralismo depois da II Guerra Mundial, de repente há um balde no meio do caminho a aparar os pingos que estão a cair do tecto. É uma boa imagem…

Do descrédito do multilateralismo?
A UNESCO tem pingas a cair do tecto no meio de quadros do Picasso… Quando cheguei para fazer o meu discurso, o microfone principal não funcionava. É essa a crise. Aprecio muito Pascal Lamy [político francês e ex-director-geral da OMC, que já presidiu à Comissão], como sabe…

Eu também.
Ele diz que o multilateralismo, tal como nós o conhecemos, um multilateralismo construído a partir dos países, já não funciona. O multilateralismo eram países à volta da mesa. A pergunta é: como vamos definir um multilateralismo 2.0? Como vamos criar um novo multilateralismo que não assente apenas nos países? Na minha área, por exemplo, na área da Ciência, o Global Fund para o combate à sida funcionou muito bem. E porquê? Porque não eram só os países, eram também os cientistas, as organizações não-governamentais, eram as próprias empresas. De certa forma, estamos a viver, não apenas a crise do multilateralismo, mas também as crises das próprias instituições. E vamos ter de definir como devem funcionar. Mas penso que ainda não estamos a conseguir fazê-lo.

Pelo contrário, as forças que se opõem ao multilateralismo estão na ofensiva, o que cria uma grande dificuldade para a Europa, que é a quintessência do multilateralismo e que vê agora o mundo andar em sentido contrário.
Exactamente.

Não seria também uma responsabilidade da Comissão pensar estrategicamente?
Mas repare: o multilateralismo ajuda, de alguma forma, os mais pequenos, porque têm um lugar à mesa. Mas também ajuda os grandes, porque têm força para influenciar decisões que, muitas vezes, não têm coragem de tomar sozinhos, porque lhes podem custar caro. Por exemplo, os Estados Unidos, como grande potência, teriam todo o interesse em resolver os problemas que enfrentam no comércio mundial através da Organização Mundial do Comércio, em vez de aparecerem como os maus da fita.

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Como faria o outro Presidente ou como fez Obama.
Exactamente. Agora, os Estados Unidos estão contra o multilateralismo, e a China que, no fundo, não teria grande interesse no multilateralismo, porque, enquanto potência em ascensão, poderia jogar melhor através de acordos bilaterais, aparece como a defensora das instituições multilaterais. O que quero dizer é que há uma grande inconsistência em relação à forma como as coisas funcionam a nível internacional. Mas voltando à sua pergunta, há estes dois movimentos pendulares: por um lado, a crise financeira que levou o pêndulo para o lado…

Dos governos…
Reforçando a dimensão intergovernamental. E depois há um grande pêndulo por cima deste pêndulo, a nível global. É paradoxal. Porque os problemas hoje são cada vez mais globais, portanto, as soluções não podem ser tomadas ao nível nacional.

Voltando à capacidade de liderança da Comissão, é verdade que o pêndulo virou para o Conselho Europeu e, dentro do Conselho Europeu, nem é irmãmente distribuído, como sabemos. A crise acentuou o poder dos grandes países. Mas, no passado, a capacidade de liderança da Comissão assentava em duas coisas. Confrontava os governos com as suas responsabilidades, da Alemanha à Grécia; era, como se lembra, a defensora dos pequenos países.
Sim.

Estas duas características perderam-se. Reconhece esta crítica?
Sim e não. Reconheço que, globalmente, a Comissão tem tido, nos últimos anos, sobretudo desde a crise de 2008, mais dificuldade em impor-se aos Estados-membros, porque eles entendem que lhes cabe mandar e tentam retirar protagonismo à Comissão.

Têm esse poder, de facto, sobretudo depois do Tratado de Lisboa.
Mas a Comissão tentou contrariar essa tendência. Tentou, por um lado, dar mais protagonismo aos pequenos países, quando o presidente Juncker nomeou para vice-presidentes antigos primeiros-ministros de países pequenos. Foi um sinal político muito interessante. O próprio Juncker sempre defendeu muito os pequenos países.

Sei isso, mas sem grandes resultados…
A questão é saber se a Comissão, no seu todo, consegue ter esse impacto e isso vem do outro problema, que é precisamente o do seu poder. Quando Margrethe Vestager [Comissária Europeia para a Concorrência] decide, as suas decisões são independentes de países grandes ou pequenos…

Porque a concorrência é competência da União Europeia.
Goste-se ou não se goste, essas decisões são claríssimas. O problema está em que a maior parte das decisões não são competência da Comissão, mas dos governos. E muitas vezes somos nós que tomamos as dores dessas decisões que não são nossas.

Percebo isso, mas não vejo que tenham tentado demarcar-se.
Do outro lado, muitas decisões que tomámos durante este mandato, seja no Mercado Único Digital, seja na União Monetária — que foram decisões da Comissão —, acabam por ser apropriadas pelos países, que falam delas como se fossem da sua iniciativa. Se quer que lhe diga, acho que isto não se vai resolver. A única maneira é a Comissão ser mais assertiva na comunicação e haver uma clarificação dos seus poderes. Encontrei-me recentemente com um grupo de embaixadores e disse-lhes que um dos momentos mais difíceis para mim foi a situação criada em relação ao acordo comercial com o Canadá. Como é que explicamos aos europeus que um poder, que é delegado na Comissão, consegue ser bloqueado pelo Parlamento da Valónia? Devíamos aproveitar o “Brexit” para pensar bem o que é que os países realmente querem da Comissão e que poderes e competências deve ter…

Clarificar? Os poderes já estão estipulados nos tratados.
Clarificar. Se não clarificarmos, vamos estar sempre nesta situação difícil.

A forma como a Comissão monitorizou a crise do euro, aplicando com total rigidez as decisões do Conselho Europeu e do Eurogrupo devem-se a falta de clarificação?
Compreendo.

Ainda por cima num contexto particular em que há uma crise provocada pelos bancos que os cidadãos têm de pagar. Podia ou não podia a Comissão ter tido uma posição diferente, contrariando a forma como os governos (alguns) decidiram aplicar as políticas de austeridade?
Mas é interessante o exemplo da crise, porque, no fundo, a crise foi fundamental para perceber como os EUA a enfrentaram e como nós a enfrentámos. Na Europa, foi muito mais dramática. Nos Estados Unidos sabia-se quem fazia o quê — se era a nível federal ou a nível estadual. Num ano, a crise resolveu-se. Aqui, passámos dez anos a discutir quem é que fazia o quê. E é interessante, porque a crise devia ter sido resolvida a nível europeu, mas os países tiveram medo de dar esse poder à União. Nós ainda não concluímos a reforma da UEM porque os países ainda não quiseram.

Alguns países.
Falta uma garantia europeia de depósitos. Durante a crise, e agora com o “Brexit”, foi interessante verificar que, muitas vezes, estamos desunidos em relação a muitas decisões e as pessoas acabam por não perceber quem as toma. O presidente da Comissão, às vezes, tenta fazer frente aos países, mas nem sempre resulta. E os próprios comissários também, depende muito de cada um, mas alguns de nós tentamos emitir a nossa opinião, ainda que mantendo a lealdade ao presidente da Comissão…

Ainda na semana passada não foi possível um entendimento sobre a Venezuela, que é um caso relativamente simples…
É verdade, mas em relação ao “Brexit”, a Europa uniu-se de uma maneira que pensei ser impossível. De certa forma, provámos que somos uma aliança forte. É uma síndroma de aliança. Nada une o Presidente da Polónia ou o primeiro-ministro da Hungria ao Presidente Macron. Mas uniu-os a defesa do Mercado Interno. Nunca pensei que fosse possível…

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E o Governo de Londres também nunca pensou. Mas voltemos à crise do euro. Fazendo um balanço da crise, o que constata um cidadão europeu, sobretudo de um país do Sul? Que houve uma crise, da responsabilidade dos bancos, que a resposta à crise foi imposta por um país, que pagou um preço elevado por ela, mesmo que veja agora a situação a melhorar um pouco. O que me impressiona é que, nem em Bruxelas nem nas capitais, dá ideia que ninguém tirou grandes lições da crise, a não ser reforçar as regras da UEM e fazer toda a gente cumpri-las. Dou-lhe um exemplo. Se a Comissão diz: “Este país está a portar-se muito bem”, isto é, reduz o défice à custa do que for, os mercados resplandecem. Se a Comissão diz: “Este país não está a fazer o que deve”, os mercados penalizam-no. É esta a lógica de antes da crise. Um dia, a preocupação em salvar o euro pode acabar por matá-lo?
Só dois ou três comentários às suas considerações. O primeiro é que nem sempre o que a Comissão diz é seguido pelos mercados, ou melhor, os mercados têm uma leitura normalmente anterior àquilo que a Comissão diz — tentam avaliar o que é que a Comissão vai dizer e descontam isso antes. E isso é, por vezes, confuso para a generalidade das pessoas. Além disso, os mercados reagem normalmente à incerteza e essa incerteza não é a Comissão que a cria, são os próprios países. Quando um país, através de declarações do seu primeiro-ministro, cria incerteza nos mercados, não é a Comissão que a provoca ou que segue os mercados. A Comissão até pode reduzir o impacte dessas declarações.

Mas a dependência em relação aos mercados continua a ser muito grande.
Mas o que são os mercados? Como sabe, trabalhei nessa área dos mercados financeiros. Os mercados somos nós, os mercados são os seus fundos de pensões.

E são as agências de rating.
Não, Teresa. As agências de rating dão um valor à probabilidade de uma pessoa pagar a outra. Os mercados não são mais do que aqueles que investem na carteira de poupanças dos bancos. Portanto, no dia em que os mercados falharem, como nós vimos com a crise, quem não recebe o seu dinheiro são as próprias pessoas.

Na lógica actual do capitalismo financeiro.
Na lógica actual do capitalismo financeiro, que é a lógia que temos. E nenhum de nós vai conseguir mudar este paradigma de um momento para outro, e aqueles que o querem mudar hoje, querem passar de uma democracia liberal para uma democracia iliberal. E isso não vai mudar os mercados.

E a reflexão sobre a crise…
Essa reflexão foi feita pela Comissão. Quando o presidente Juncker lançou aqueles cinco cenários para discussão, eles foram ignorados pelos governos. Fora os governos que não quiseram discutir. Quando os ingleses começaram a discutir o referendo, só queriam saber se deixavam ou não entrar os emigrantes e se os imigrantes tinham direito à segurança social.

E deu um resultado muito mau.
Em vez de estarem a discutir a questão essencial: quais são as funções da Comissão Europeia?

Ou da União Europeia.
Mas especificamente da Comissão, porque creio que a Comissão é o coração disto tudo. Enquanto braço executivo, quais são os poderes da Comissão? Esperamos que estes cenários sejam discutidos até à reunião de Sibiu [na Roménia, para onde está previsto um Conselho Europeu informal], mas reconheço que não estão a ser discutidos, porque os países estão a olhar para o lado.

Caíram rapidamente no esquecimento, é verdade.
Desculpe a expressão, mas estão a assobiar para o lado. O que quero dizer é que a reflexão foi feita. É interessante o que dizem hoje os próprios populistas. Um [primeiro-ministro grego Alexis] Tsipras ou um [vice-primeiro-ministro italiano Matteo] Salvini eram contra a União Europeia e agora já dizem outra coisa: “Nós apenas somos contra esta União Europeia”…

Não pode comparar Tsipras com Salvini…
Não, não. Não os comparo, cada um no seu…

O primeiro-ministro grego, além de ter aprendido muito, não é xenófobo nem racista.
Não, obviamente, mas teve, como sabe, no seu Governo pessoas que são anti-semitas…

Que, por acaso, já lá não estão. Hoje é um verdadeiro social-democrata.
E foi ficando um social-democrata. Estive recentemente numa grande conferência em Itália, à qual Salvini foi dizer, justamente, que não era contra a Europa, mas apenas achava que a Europa não estava a funcionar.

Devia estar a falar para empresários.
Para empresários. Adaptou o discurso. O que creio que não se conseguiu nestes quase cinco anos de experiência na Comissão foi, realmente, uma discussão séria nos países. Porquê? Há sempre a desculpa dos Tratados. Quando quero fazer alguma coisa com os meus serviços, a primeira resposta que obtenho é essa: “Os Tratados não permitem.” Quando o presidente Juncker lançou a ideia de que é preciso acabar com a unanimidade para tudo…

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Jean-Claude Juncker e Carlos Moedas na Assembleia da República, em 2015. Moedas sublinha a tentativa do presidente da Comissão de acabar com necessidade de haver unanimidade para todas a grandes decisões da UE Nuno Ferreira Santos

O que parece ser uma boa ideia, de forma a permitir que as coisas funcionem…
Mas caiu-lhe tudo em cima.

Nomeadamente em matéria de política externa — é mais ou menos evidente que a unanimidade paralisa a União. Mas voltando ainda à questão da percepção dos cidadãos e à falta de reflexão sobre a crise, deixe-me dar o exemplo de Itália, cuja economia está em recessão e que nunca teve, de resto, um problema de défice, mesmo que tenha um problema de dívida. O Governo apresenta um Orçamento a Bruxelas que prevê um défice maior para tentar estimular a economia, mas é obrigado a recuar para cumprir as regras definidas para o euro. Como é que um cidadão reage a isto? Não será uma boa forma de alimentar o populismo?
Tem razão quando diz que o problema de Itália não é o défice, é a dívida — que é um problema diferente. Ponho a questão ao contrário: um país sozinho, fora da União Europeia, não tem restrições à dívida e ao défice?

Tem, evidentemente. Mas isso é a contra-argumentação mais fácil.
Mais fácil, no sentido de que é a real. Depois, há a questão política. A Comissão deveria tomar estas decisões de uma perspectiva política, com uma avaliação política — e digo-lhe que é o que temos na cabeça quando fazemos estas avaliações. O problema é que estas regras do euro são extremamente complicadas, para que as pessoas as consigam perceber. Os cidadãos não percebem as regras no Pacto de Estabilidade, porque as regras foram construídas de uma maneira que não é clara e, quando as coisas não são claras, têm consequências negativas. Mas o que eu sempre defendi na Comissão foi dizer: as regras são as regras, mas depois tem de haver uma decisão política. No caso de Itália, acabámos por tomar uma boa decisão política, a situação ficou resolvida apesar de um Governo liderado por Salvini e por Di Maio [vice-primeiro-ministro e líder do Movimento Cinco Estrelas], provando que é possível negociar com eles.

A minha questão é simples: na tomada de decisões, os cidadãos não podem ser eliminados da equação. E muitas vezes são.
Sem dúvida. A Comissão pode ser criticada por muitas coisas, mas o presidente Juncker tentou sempre levar em conta a realidade, mesmo contra opiniões diferentes no próprio colégio de comissários, contra chefes de Estado e de Governo que não hesitavam em pressioná-lo. Sabe tão bem como eu que a posição de um país como, por exemplo, a Alemanha foi sempre a de que a Comissão deve ser um corpo tecnocrático.

É agora a posição da Alemanha é, de há muito, a posição da França.
E a Comissão fez frente a essa tendência. O presidente Juncker nunca teve problemas com isso, talvez por ser um homem livre, que não quer mais um mandato. A sua ideia de uma Comissão mais política continua a fazer sentido. É interessante que essa questão nunca tenha sido discutida em Portugal e noutros países europeus.

Estamos perante a eminência de um “Brexit” sem acordo, o que será uma catástrofe — para os britânicos, para os europeus, para o mundo. Mesmo assim, mantém-se um braço-de-ferro entre Bruxelas e Londres que não augura nada de bom. Ainda é possível, por exemplo, um adiamento da data de saída?
Só eles podem sugerir um adiamento. Se pedirem, penso que não será difícil aceitar. O que não é possível é querer passar a bola para o nosso lado. Se me conseguir explicar o que eles querem? Vamos reabrir as negociações? E, depois, o Parlamento britânico volta a chumbar o acordado? A chanceler Merkel dizia em Davos que, até isto tudo estar concluído, ainda vai demorar muito.

Depois, é preciso negociar a relação futura.
Como vai ser essa relação? Mas não me lembro de nenhuma outra negociação onde estivesse estado envolvido em que ninguém soubesse o que poderia acontecer. Não vale a pena sequer fazer qualquer tipo de especulação. Todos esperamos que, na 25.ª hora, aconteça alguma coisa.

Até porque a pressão dos agentes económicos sobre o Governo britânico ou sobre o Governo alemão é enorme, neste momento. Mas gostava de colocar a questão de outra maneira. O Reino Unido é uma potência militar, uma potência científica, uma potência económica e um país que tinha um papel fundamental nos equilíbrios de poder internos da própria União Europeia. Como será a Europa depois do “Brexit”?
Creio que há oportunidades, mas há um impacto negativo enorme em todas as áreas.

Também na sua.
É muito fácil de ver. Quando olhamos para os rankings das melhores universidades do mundo, do número 1 até ao número 19 são todas americanas, britânicas e uma suíça. Um dos meus objectivos tem sido manter a possibilidade de o Reino Unido ficar dentro da União nos domínios da Ciência e da Inovação.

E isso é possível?
Esperemos que sim. Na minha proposta ao Parlamento Europeu, o Reino Unido pode manter a cooperação de uma maneira muito fácil a que nós chamamos de “pay-as-you-go”, ou seja, se participa em cinco projectos, financia cinco projectos. Eles não ganham dinheiro connosco, nós não ganhamos dinheiro com eles, mas continuam a participar. Já temos um modelo semelhante com a Suíça ou com Israel, ou como gostaria de ter com o Canadá. A minha ideia é ter uma União da Ciência que seja muito maior do que a União Europeia, deixando as portas abertas para isso. Essa relação futura pode, no fundo, minimizar os danos.

Na Ciência?
Provavelmente, deveríamos ir também para outras áreas como o Espaço ou a Defesa ou em relação à luta contra o terrorismo. Não estou a ver como é que vamos fazer a luta contra o terrorismo dispensando a contribuição britânica.

Em matérias de Informações?
Por exemplo. Mas tudo isto terá de ser definido no quadro da relação futura. Mas, no fundo, o que estamos a tentar é minimizar uma degradação do poder da União Europeia.

Os equilíbrios internos também se alteram. Portugal, mas também países com uma forte dimensão atlântica como a Dinamarca, a Holanda vão ter de se adaptar?
Vão mudar os equilíbrios da própria União. Alguns países, como a Holanda, por exemplo, utilizavam sempre o Reino Unido para dizer as verdades que eles não queriam dizer.

Não é fácil reconstruir esses equilíbrios?
Não é nada fácil. Nesse sentido, o “Brexit” é, sem dúvida, um dos maiores desastres que a União sofreu ultimamente.

E isso acontece num momento em que a União Europeia está em risco de perder o seu grande aliado transatlântico.
Completamente.

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É uma espécie de corte com o mundo anglo-saxónico. Isto deixa-o tranquilo?
Creio que nos deixa com uma responsabilidade diferente, de tentarmos aproveitar a situação inevitável como uma oportunidade para nos reorganizarmos. Creio que o mundo anglo-saxónico tem muitas vantagens, mas também tinha uma desvantagem muito clara: era um travão à própria integração. De certa forma, historicamente, os britânicos nunca quiseram essa integração…

Para além da económica, digamos.
E muitos países esconderam-se atrás do Reino Unido para também a tentar travar. Agora podemos definir melhor que Europa iremos construir.

Pode haver uma clarificação? É o que está a dizer?
Uma clarificação. Penso que isso é importante.

Em que sentido? Ouvimos, por exemplo, o primeiro-ministro holandês dizer quase todos os dias que é preciso devolver poder aos Estados.
Mesmo o primeiro-ministro holandês tem vindo a mudar de discurso no último ano. Não acha? Lembro-me que, quando vivi nos Estados Unidos e apareceu o Facebook e o Google, ninguém lhes deu a devida importância. Porque, na altura, era impossível ver o futuro. Neste momento, o futuro já não será o Google e o Facebook — esses são o presente. Creio que o futuro vai ser muito mais nas áreas das ciências fundamentais. A Inteligência Artificial, o blockchain ou a Física são as áreas que vão mudar de novo o mundo. Onde estão os melhores cientistas nessas áreas? Na Europa. Mas podem fugir para os Estados Unidos ou para a China, se lá pagarem mais.

Ou se tiverem melhores condições.
Se tiverem melhores condições. Mas digo-lhe que, nesta minha posição, nunca como hoje recebi tantas chamadas telefónicas de cientistas dos Estados Unidos e da China a quererem vir para a Europa. Nunca tinha visto pessoas como Bill Gates ou Tim Cook a dizerem que o que a Europa está a fazer em relação, por exemplo, à regulamentação dos dados é o melhor que se está a fazer no mundo. Aquilo que a Europa fez em relação à directiva dos pagamentos bancários, que veio liberalizar a maneira como se fazem esses pagamentos entre as empresas e os bancos, é o mais avançado do mundo. O que a Europa fez é o melhor do mundo.

Não está, portanto, preocupado com a rivalidade tecnológica que parece travar-se hoje entre os EUA e a China? Por exemplo, na Inteligência Artificial?
Essa rivalidade existirá sempre, mas eu acho que aí…

A China está com uma progressão impressionante.
É verdade, mas isto é uma maratona. Estamos todos a correr e aquilo que nos vai diferenciar, no futuro, não vai ser a tecnologia, mas a ciência. Nós estamos a definir, na Europa, um caminho visionário.

O que quer dizer?
Queremos uma Inteligência Artificial que seja boa para a humanidade, queremos que os dados façam parte da nossa dignidade humana. Essa visão humanista da ciência e da tecnologia é europeia. Não é nem chinesa, nem americana.

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De acordo, mas de repente veio-me ao espírito a célebre cimeira de Copenhaga sobre as alterações climáticas em que a Europa também tinha uma visão ambiciosa e humanista e quando deu por si os EUA, a China e as outras grandes potências emergentes estavam na sala ao lado a negociar um acordo. Não corremos esse risco?
Nós não sabemos os riscos.

Mas a Europa, às vezes, parece a velha senhora que não se dá com o povo e depois acorda sozinha.
Sem dúvida. Sem dúvida. Mas, sobretudo, porque os outros não jogam as mesmas regras de jogo. O mundo é assim. Mas costumo dizer que não é porque os outros são imperfeitos, que nós devemos ser imperfeitos. Devemos procurar essa perfeição. Veja o que se passa hoje com o mundo digital que nos tornou, de certa forma, mais humanos e mais emocionais. Poderíamos pensar que nos tornaria mais racionais. Mas exactamente porque o digital se tornou uma commodity, assim como a electricidade no princípio do século, estamos a tornar-nos mais emocionais, vemos isso nas redes sociais, vemos isso…

O que também se tornou um problema para o funcionamento das democracias.
É verdade. A tecnologia ajudou-nos economicamente, mas está a deteriorar a democracia. E serão aqueles que conseguirem utilizar a tecnologia para melhorar a democracia que sairão vencedores no longo prazo. E aí a Europa tem uma oportunidade de se posicionar.

Hoje, a questão do proteccionismo está em cima da mesa. Esta semana, o ministro alemão da Economia anunciou que o Governo vai criar um fundo de investimento estatal para intervir nas empresas que sejam alvo de takeovers de companhias exteriores à Europa. A primeira questão é se isto é legal. Mas é, de qualquer forma, um sinal. Os EUA iniciaram uma guerra comercial com a China, que pode afectar toda a gente. Como é que a Europa se posiciona nesta nova realidade em que, por um lado, a China não joga as regras do jogo e, por outros, os EUA estão a fazer do proteccionismo uma forma de fortalecerem ainda mais a sua economia? Vamos caminhar também para a “Europe First”, “Germany First”, etc.?
O problema principal é que a globalização não funcionou para todos da mesma maneira. E há dois tipos de respostas: para uns, é o proteccionismo; para outros, nos quais me incluo, a resposta é uma globalização menos naïve. Mas isso não é proteccionismo. Há várias coisas a ter em consideração. A primeira, é a questão da justiça fiscal: as grandes empresas digitais pagam muito menos impostos do que as empresas do mundo físico. Isso é concorrência desleal. Os gigantes tecnológicos americanos vêm para a Europa e, praticamente, não pagam impostos. Pagarão nos Estados Unidos, mas não pagam na Europa. O comissário Pierre Moscovici [com a pasta dos Assuntos Económicos e Financeiros, Tributação e Alfândega] resumiu a questão dizendo que empresas têm de pagar os seus impostos onde produzem os seus lucros. Infelizmente, devido ao problema da unanimidade ou da necessidade de unidade, há entraves…

A aplicação de impostos às tecnológicas não foi para a frente, a não ser em França.
Portanto, temos de criar uma justiça fiscal diferente ao nível global, assente na ideia de uma globalização com reciprocidade. Essa reciprocidade tem a ver com fiscalidade, mas também com as empresas que trabalham na Europa. Em termos de public procurement, ou de contratação pública global, a Europa representa triliões de euros, o que nos permite dizer a quem trabalha connosco que tem de respeitar as nossas regras. Se uma empresa que vem da China ou dos Estados Unidos ganha um concurso público na Europa, então devemos exigir-lhe que respeite as nossas normas ambientais, os padrões do trabalho, que pague os impostos devidos. A única maneira de combater os populistas que querem voltar ao proteccionismo, cujo resultado a História já nos ensinou qual é, é uma globalização que não seja naïve, que tenha a ver com a reciprocidade. Por exemplo, por iniciativa do presidente Juncker, já temos um regulamento de screening dos investimentos, um filtro dos investimentos estrangeiros…

Dirigido, obviamente, à China.
À China e a outros. O caminho é por aí, porque nós não vamos nunca conseguir travar a globalização, que já é uma realidade, com as cadeias de abastecimento globais. Mas temos de jogar com os outros um jogo forte.

É fácil um consenso neste domínio?
Aí é que considero que o multilateralismo pode funcionar. Repare no que se passa com a Organização Mundial do Comércio. A OMC funciona bem no que respeita às disputas entre os vários países. Mas já não funciona bem, por exemplo, nas regras em matérias de subsídios de Estado. Tivemos o caso das companhias aéreas, por exemplo. Uma empresa subsidiada pode, em teoria, vender bilhetes a custo zero. Uma reforma da OMC que possa colmatar esta lacuna seria positiva e resolveria melhor os problemas do que uma guerra comercial. E já estamos a ver as consequências dessa guerra comercial com o abrandamento do crescimento da economia mundial. As estimativas do FMI em relação ao crescimento mundial…

A Europa, nomeadamente a zona euro, já está preparada para resistir a esse abrandamento sem alimentar ainda mais os populismos? Temos eleições europeias em Maio e os seus resultados podem revelar-se muito desagradáveis.
Sabe que cheguei à conclusão, nestes cinco anos, de que nem tudo se resume à questão económica. Um país como a Polónia, que tem mantido um crescimento elevado, em que o desemprego baixou, não evitou uma vaga populista e nacionalista. Ou seja, nem tudo tem a ver com a economia. Tem a ver com este medo que as pessoas têm…

Medo do futuro, um sentimento de incerteza.
O medo de não ter um trabalho, o medo de que os computadores venham substituir-nos.

O medo dos que são diferentes.
O medo dos outros. E as estimativas para o Parlamento Europeu são bastante assustadoras. Só posso deixar um apelo às pessoas para que realmente votem. Porque quando se vê as estimativas para o Partido Popular Europeu [centro-direita], os Socialistas e Democratas [centro-esquerda] e os Liberais, vão eventualmente baixar. Hoje constituem 60% do PE, mas podem passar para 50%. Se for assim, quer dizer que metade do PE são pessoas ou que não trabalham — porque os extremistas não trabalham, não vão a comissões, etc. — ou não acreditam na Europa. E aí, devo dizer que somos muito ingénuos. Alimentamos estes populistas com salários, com despesas de representação, com o seu staff, para lutarem contra a Europa.

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Neil Farage no Parlamento Europeu EPA/PATRICK SEEGER

Mas, desculpe, eles foram eleitos, têm os mesmos direitos que os outros. É a democracia.
É a democracia, mas é uma democracia naïve. A senhora Le Pen está acusada de utilizar os dinheiros do Parlamento Europeu para pagar a pessoal político no seu país…

Mas também há eurodeputados dos partidos pró-europeus acusados do mesmo. Não é critério, a democracia é assim.
Sem dúvida. Mas não se esqueça de uma coisa: os populistas não lutam com as mesmas armas do que nós. E lutam dentro do Parlamento para a destruição do projecto europeu.

Têm esse direito.
Mas as pessoas têm de ter consciência disso. Temos de ser mais claros e dizer às pessoas que se querem votar nesses partidos estão a destruir o projecto europeu. Porque é que o senhor Farage [antigo líder do UKIP britânico, de extrema-direita, e defensor do “Brexit” desde sempre] depois de 18 anos a lutar para o Reino Unido sair da União Europeia, continua a receber o seu salário?

Porque a democracia é assim.
A democracia é assim, mas ele não devia ser assim. Se eu estivesse na posição dele tinha-me demitido. As pessoas têm de denunciar. E creio que não denunciamos o suficiente. Vemos os partidos populistas da esquerda portuguesa, como é o caso do Bloco e do PCP, a votarem no PE nas mesmas posições que Farage ou Le Pen e as pessoas não sabem. É importante dizê-lo.