Bolsonaro e os bandidos

Nunca o mundo do crime foi tão poderoso no Brasil. Cresce de Norte a Sul. É um desafio ao Estado.

Quem ganha a “guerra do crime”? Bolsonaro ou as facções, nome brasileiro das organizações criminosas? Não é um simples “caso de polícia” mas uma ameaça ao Brasil. A segurança foi um dos temas dominantes da campanha eleitoral. Em 2017, o número de homicídios voltou a bater o recorde, com 63.880 vítimas — uma média de 175 por dia. O país tem, ao mesmo tempo, uma das maiores populações carcerárias do mundo: 730 mil pessoas. Os especialistas acusam os políticos de erros estratégicos no combate à violência. Nunca o mundo do crime foi tão poderoso.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Quem ganha a “guerra do crime”? Bolsonaro ou as facções, nome brasileiro das organizações criminosas? Não é um simples “caso de polícia” mas uma ameaça ao Brasil. A segurança foi um dos temas dominantes da campanha eleitoral. Em 2017, o número de homicídios voltou a bater o recorde, com 63.880 vítimas — uma média de 175 por dia. O país tem, ao mesmo tempo, uma das maiores populações carcerárias do mundo: 730 mil pessoas. Os especialistas acusam os políticos de erros estratégicos no combate à violência. Nunca o mundo do crime foi tão poderoso.

Está em curso um pequeno teste. Na madrugada de 2 de Janeiro, estalou uma vaga de violência no Ceará (na foto), promovida por várias facções. Até ontem, havia notícia de 211 ataques em 46 municípios cearenses. Foram incendiados autocarros, camiões do lixo, automóveis, prédios públicos e colocadas bombas em postes de alta tensão, num viaduto e no metropolitano. Há, paralelamente, uma “guerra virtual”, via WhatsApp e Facebook, para criar pânico. Não é o apocalipse, é um desafio ao Estado.

A violência foi desencadeada partir das cadeias, depois do secretário da Segurança do Ceará ter anunciado um reforço drástico do controlo dos presídios e a transferência de criminosos para prisões fora do estado. O ministro da Justiça, Sérgio Moro, enviou reforços federais. O Ceará é governado pelo PT.

Não é inédito. Houve dezenas de motins antes deste, como a rebelião das cadeias de São Paulo em 2006. Relatou o Estadão: “Bases da polícia, bombeiros, agentes penitenciários e policiais de folga foram atacados em acções orquestradas a partir da facção que age dentro e fora dos presídios. O dia 15 de Maio de 2006 marcou o ápice da onda de violência iniciada alguns dias antes. A cidade de São Paulo parou.” Balanço: de 260 a 600 mortos.

As facções

Durante décadas, a criminalidade urbana era violenta mas “artesanal”. A violência tem raízes históricas, basta pensar no cangaço ou nos jagunços. Em 1979, no fim da Ditadura Militar, surge uma ruptura. Criminosos do Rio de Janeiro — assaltantes de bancos — fundam no presídio da Ilha Grande uma organização de tipo novo: a Falange Vermelha, depois rebaptizada Comando Vermelho (CV). Os militares consideravam os “guerrilheiros” esquerdistas delinquentes comuns e encerravam-nos em presídios mistos. Com eles, os “bandidos” aprenderam novas estratégias.

Em 1993, na prisão de Taubaté, São Paulo, um grupo de detidos, inspirado no CV, funda o Primeiro Comando da Capital (PCC), “para proteger os irmãos nas cadeias”. Criminosos de quase todos os estados vão adoptar novos tipos de organização. A terceira facção mais forte será hoje a Família do Norte (FDN), no Amazonas, criada em 2007. Na Paraíba, há duas curiosas facções em guerra: a Okaida (de Al-Qaeda) contra a Estados Unidos.

O CV e o PCC tinham áreas de “soberania” delimitadas e colaboravam entre si. O tráfico de droga era o principal negócio, mas a extorsão ou os assaltos a bancos não eram desprezíveis. Os quartéis-generais sempre foram as cadeias, onde estão os chefes e de onde partem as directivas. As cadeias estão superlotadas, mas esmagadora maioria dos presos são pequenos delinquentes, que aí são instruídos e recrutados — “baptizados”. Chamam às prisões “faculdades”. Reconhece o ex-ministro da Segurança Raul Jungman: “Hoje, o sistema penitenciário brasileiro, que já é o terceiro maior do mundo, está sob o controlo das facções.”

CV e PCC entram em conflito em 2016. De regionais passaram a federais, disputando as rotas dos tráficos e o controlo das regiões fronteiriças. Fazem alianças e franquias. Estão já presentes no Paraguai e no Peru. Outro tema de conflito tem a ver com os “baptismos” nas prisões. O PCC proibiu o CV de recrutar nas cadeias que domina.

A “guerra das facções” é uma das razões do aumento exponencial dos homicídios. E também dos muitos massacres nas cadeias e fora delas. Exemplo: em Janeiro de 2017, num presídio de Manaus, a FDN massacrou 56 presos, dos quais 26 filiados no PCC. Muitos foram decapitados. O governo decidiu separar as facções nos presídios, para evitar massacres.

O PCC tem o monopólio em São Paulo e é a facção que mais cresce, com dezenas de milhares de membros. Tem uma estrutura descentralizada, o que facilita a expansão e dificulta a acção policial. “Não é uma empresa mas uma rede de empresários criminais”, resume o investigador Gabriel Feltran. Oferece uma vantagem: regula o crime nas periferias de São Paulo. A taxa de homicídios neste estado é a mais baixa do Brasil. O PCC impõe “a paz entre ladrões.”

As facções não são máfias — pelo menos até agora. Não se comparam às máfias italianas ou mexicanas. “Lavam dinheiro” mas não têm a capacidade de reciclar capitais na economia legal. E não têm tentáculos dentro do Estado. Mas, “se o PCC se impuser no Norte, não será apenas o maior grupo do crime organizado no Brasil — será um dos grandes players do narcotráfico regional e um dos maiores desafios que o Brasil terá pela frente”, escreve a revista Carta Capital.

Bolsonaro

A campanha de Bolsonaro — “matar bandido”, liberalizar as armas de fogo e reduzir a idade penal — foi o exemplo da solução populista. O novo governador do Rio, Wilson Witzel, fala em drones e snipers para o “abate” de suspeitos armados. O populismo dá votos porque “o medo do crime é uma variável permanente na maioria da população brasileira”, diz Samira Bueno, directora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

“Os governadores vão se valer do discurso da emoção e do medo e não lidar de uma forma racional”, adverte o coronel Robson Rodrigues, ex-comandante das Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Rio de Janeiro. Os estudiosos criticam a falta de informação (intelligence) e a ausência de políticas preventivas, a começar pela regulação do mercado das drogas.

As polícias estaduais e federais não colaboram, quando o fenómeno é hoje federal. E recusam abordar o papel central dos presídios no fortalecimento das facções. Querem até mais presos. “As propostas [dos governadores] foram muito focadas na agenda de Bolsonaro, basicamente no enfrentamento violento ao crime e com discursos que encorajam a letalidade policial”, resume Bueno.

Aguardam-se as políticas do ex-juiz Sérgio Moro. Deixo uma confissão de João Guimarães Rosa: “Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.”