Os ex-espiões da CIA que desafiaram a tradição para chegarem ao Congresso

O secretismo que os antigos espiões mantinham quando saíam da CIA está a ser posto em causa. Na nova geração, há quem sinta a necessidade de discutir as leis e não apenas cumpri-las.

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Abigail Spanberger, mãe de três filhos, derrotou um congressista do Partido Republicano em Novembro passado LUSA/SHAWN THEW

Quando Abigail Spanberger decidiu abraçar a vida secreta de agente da CIA, não se imaginava a renunciar a essa condição.

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Quando Abigail Spanberger decidiu abraçar a vida secreta de agente da CIA, não se imaginava a renunciar a essa condição.

Spanberger recrutou espiões na Europa, onde se especializou em contraterrorismo e proliferação nuclear. Ambicionou vir a ser nomeada chefe de missão, o equivalente na CIA a embaixadora. Em vez disso, acabou por abandonar a agência em 2014, depois do nascimento da sua terceira filha, em busca de uma vida mais tranquila.

Depois disso veio a eleição de Donald Trump, e com ela o ambiente descontrolado em que o partidarismo triunfa frequentemente sobre os factos. Foi nessa altura que Spanberger decidiu fazer algo radical para um ex-espião: concorreu à Câmara dos Representantes, pelo Partido Democrata. Nas eleições de Novembro passado, afastou do lugar o congressista republicano Dave Brat, no 7.º Distrito da Virgínia.

Na quinta-feira, na inauguração do 116.º Congresso, juntou-se a um pequeno grupo de antigos funcionários dos serviços secretos que se tornaram legisladores.

"Abandonar a CIA foi a maior derrota da minha vida. Chorei pela agência. E sinto a sua falta todos os dias", disse Spanberger, de 39 anos.

Contra a "velha guarda"

A ideia de que um agente da CIA pode vir a concorrer a um cargo público a nível nacional teria sido rotulada de sacrilégio por antigas gerações de agentes, disse o ex-director Leon Panetta, que liderou a agência após 15 anos na Câmara dos Representantes.

Mais do que qualquer outro membro dos serviços secretos, os funcionários da CIA optam geralmente por assumir uma postura discreta depois de abandonarem a agência. E mesmo aqueles que se lançam para uma vida de reconhecimento público normalmente evitam o Congresso, cuja supervisão sobre a agência já gerou diversos problemas.

"A 'velha guarda' dirá: 'O que é que vocês têm na cabeça? O vosso papel é manterem-se anónimos e deixar o jogo político para os que não sabem o que fazem", disse Panetta. "Mas a geração mais jovem da CIA não está particularmente identificada com esse legado dos serviços secretos, e acredita que é importante envolver-se na política, por que se não o fizer, outros irão distorcer o trabalho das agências."

Abigail Spanberger trabalhou para a CIA durante oito anos, e agora vai servir no Congresso juntamente com outros dois antigos agentes: Elissa Slotkin, de 42 anos, uma analista com três missões no Iraque que venceu o 8.º Distrito do Michigan pelo Partido Democrata, afastando um republicano; e o congressista Will Hurd, um republicano do Texas, de 41 anos, que trabalhou infiltrado no Médio Oriente e no Sul da Ásia, e que serve o 23.º Distrito do Texas desde 2015.

"Para muitos daqueles que, como nós, têm antecedentes relacionados com a segurança nacional e que não têm ligações partidárias, é importante trazer as suas histórias e as suas competências para o serviço público", disse Spanberger. "Servimos e estivemos em missão sob a liderança de Presidentes republicanos e democratas."

Slotkin e Spanberger granjearam a atenção mediática por serem espiãs transformadas em deputadas, mas o seu trajecto tem antecendentes.

Porter Goss iniciou a sua carreira na CIA como agente clandestino nos anos 1960 e depois serviu no Congresso entre 1989 e 2004, representando o 14.º Distrito da Florida, antes de regressar a Langley [sede da agência] para ser director. Bob Barr, um antigo analista na América Latina, representou a Geórgia no Congresso, entre 1995 e 2003. Barr concorreu à Casa Branca em 2008, pelo Partido Libertário, tal como o ex-director de operações da CIA Evan McMullin, que concorreu à Presidência em 2016, como independente.

Reacção anti-Trump

Para além de Spanberger, Slotkin e Hurd, o novo Congresso inclui pelo menos dez outros congressistas que trabalharam com material classificado no Exército ou no Conselho de Segurança Nacional, segundo os dados da empresa Quorum.

Panetta, que foi director da CIA entre 2009 e 2011, sob a presidência de Barack Obama, acredita que os ataques de Trump à comunidade de serviços secretos vem encorajar ainda mais a tendência recente de antigos funcionários entrarem na arena política.

Nove dias antes da tomada de posse, e na sequência das notícias sobre as suas ligações com a Rússia, Trump comparou os serviços secretos dos EUA aos nazis. "Estamos a viver na Alemanha Nazi", disse no Twitter.

Donald Trump também tem questionado constantemente as conclusões das agências norte-americanas, incluindo as relacionadas com as ameaças nucleares da Coreia do Norte, com a adesão do Irão ao acordo nuclear de 2015 e com o envolvimento do príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman, no assassínio do jornalista Jamal Khashoggi, que colaborava com o Washington Post como colunista.

Spanberger confessou ter ficado chocada quando, no primeiro dia em funções de Trump, o Presidente visitou a sede da CIA e fez um discurso auto-elogioso e cheio de erros em frente ao Memorial Wall, que homenageia os agentes que morreram no cumprimento do seu dever. Trump vangloriou-se do quão jovem se sentia, atacou os jornalistas rotulando-os como "os seres humanos mais desonestos do planeta Terra" e reivindicou erradamente que tinha aparecido na capa da revista Time mais vezes do que qualquer outra pessoa.

"Foi triste testemunhar aquilo. Aquele local era território sagrado", disse Spanberger, que marcou presença na Marcha das Mulheres em Washington, naquele mesmo dia, e que por isso teve de assistir ao discurso pela televisão.

Mas, mais do que tudo, perturbou-a a rejeição de Trump das investigações dos serviços secretos sobre a interferência russa nas eleições presidenciais. "Sei o que consta dos relatórios", disse Spanberger. "E o facto de ele ter tomado o partido de um adversário estrangeiro, em vez do nosso país, aterroriza-me."

Habituados ao diálogo

No Congresso, Spanberger acredita que a sua experiência vai ajudá-la a estreitar o fosso que a separa dos republicanos. Na CIA, quando lidava com informadores, era responsável pela sua segurança.

"Trabalhar com os outros significa construir confiança e criar relacionamentos pessoais do outro lado da barricada, que podem não querem trabalhar com os democratas", disse. "Faz parte das minhas competências encontrar qualquer pedacinho de convergência."

A antiga agente conta ainda que a CIA também a preparou para ser uma especialista em temas complexos.

"Num dia estava a trabalhar num caso sobre o nuclear, no dia seguinte sobre casos relacionados com droga, no outro sobre uma qualquer liderança política", disse Spanberger, que trabalhou para uma empresa de consultoria na área da Educação antes de concorrer ao Congresso.

Gostaria de integrar a Comissão de Agricultura, mas, é claro, também tem esperança de conseguir um lugar na Comissão de Serviços Secretos. "Quando preenchi as minhas preferências para as comissões, pensei: 'Onde posso ser mais útil?'", disse. "Mas normalmente não aceitam novos membros na Comissão de Serviços Secretos. Sinceramente, ficaria surpreendida se conseguisse o lugar. Mas há justificações convincentes para que faça sentido entrar."

Juntamente com Spanberger, Slotkin tem esperança de poder aplicar os seus conhecimentos sobre temas como a cibersegurança e a interferência russa nas eleições. E, por isso, compara o papel que vai ter no Congresso ao cargo de analista na direcção da agência.

"A minha tarefa era separar o trigo do joio, resumi-lo e apresentá-lo ao pessoal senior", disse Slotkin.

O que mais a enfurece na política é que o Congresso permita que conflitos sobre temas-chave se arrastem, disse. "Quando há um desacordo sobre as armas e a segurança, costumam chutá-la de imediato para canto", disse Slotkin. "Nos serviços secretos, quando nos é revelada uma grande ameaça, juntamo-nos todos numa sala, temos um debate vigoroso e só saímos como um plano."

O prestígio da CIA

Durante a sua campanha, Spanberger não se inibiu sobre a possibilidade de utilizar a CIA como uma mais-valia, uma posição relevante para uma mulher que concorria num distrito bastante disputado. O vídeo autobiográfico publicado no seu site inclui uma fotografia sua com o antigo director da CIA Michael Hayden e com o ex-vice-director Stephen Kappes – uma imagem cuja utilização teve de ser requerida à CIA.

E no Twitter fez referência aos seus antecedentes na CIA, em mais de 40 mensagens, de acordo com a Quorum.

Mas, apesar de se estar a divertir com o seu novo cargo público – a sua última fotografia no Instagram mostra-a com o marido e as três filhas, todos vestidos com pijamas de Natal às riscas –,  Spanberger ainda guarda segredos. Não pode dizer em que país da Europa Ocidental esteve destacada. Não pode revelar nada sobre o seu papel como agente infiltrada fora dos EUA e não pode dizer o que fez para a agência na "Costa Oeste".

Nem sequer pode explicar os símbolos de uma moeda dourada que recebeu depois de completar a formação na CIA, em 2006.

A pequena lembrança, que guarda numa gaveta do armário, junto ao seu anel de noivado, mostra uma água e uma tocha, e tem os números 20-339 na outra face.

O que significam os números?

Não diz.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post