A fundação da Amnistia Internacional assenta num detalhe difícil de provar

As diferentes versões envolvem portugueses, talvez estudantes, que foram presos em 1960 por brindar à liberdade ou participar em actividades subversivas. A dificuldade em provar o mito não invalida o papel da organização na luta pelos direitos humanos: "O que nos move é a liberdade", diz Pedro Neto, da Amnistia Internacional Portugal.

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MIGUEL MANSO

Houve ou não um brinde à liberdade que levou à prisão de dois estudantes portugueses em 1960? Quem eram? E onde está a notícia que mostra, tal como relatou o fundador da Amnistia Internacional (AI), Peter Benenson, que isso realmente aconteceu? São algumas questões que continuam sem resposta há décadas. Como nota o historiador Tom Buchanan, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, não é possível provar que aconteceu, mas também não se consegue mostrar o contrário. "O grande problema é que nos falta uma referência para esta história em particular." 

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Houve ou não um brinde à liberdade que levou à prisão de dois estudantes portugueses em 1960? Quem eram? E onde está a notícia que mostra, tal como relatou o fundador da Amnistia Internacional (AI), Peter Benenson, que isso realmente aconteceu? São algumas questões que continuam sem resposta há décadas. Como nota o historiador Tom Buchanan, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, não é possível provar que aconteceu, mas também não se consegue mostrar o contrário. "O grande problema é que nos falta uma referência para esta história em particular." 

Em 1983, Peter Benenson lembrava a epifania que, em 1960, esteve na origem da organização. “Foi a 19 de Novembro de 1960 quando estava a ler no metro (estranhamente lia o The Daily Telegraph [o jornal está conotado com a direita inglesa]) que vi num curto parágrafo a história de dois estudantes portugueses que foram condenados a penas de prisão por terem feito um brinde à liberdade num restaurante de Lisboa.”

Terá sido essa a primeira vez que Benenson referiu o brinde que hoje é gesto comum de encerramento dos encontros da AI — e a história que a organização continua a contar sobre a sua origem. Anos antes, em 1962, numa conversa com a BBC, já falava em dois estudantes presos por criticarem o Governo durante uma conversa num restaurante, mas não mencionava o episódio do brinde.

A busca por estes estudantes é um exercício complexo. Em 2002, numa nota de rodapé do artigo intitulado A verdade vai libertar-te: a criação da Amnistia Internacional (traduzido do inglês) Tom Buchanan lançava uma pequena luz sobre o assunto. Na altura, escrevia que “alguns elementos sobre a história dos estudantes nem sempre ficam à altura do escrutínio da história”. Porquê? Há várias imprecisões e datas trocadas nos relatos de Benenson. 

Várias hipóteses

Tendo como guião o testemunho que o criador da AI deu em 1983, o historiador procurou no The Daily Telegraph notícias de 19 de Novembro de 1960 que fizessem referência à prisão dos estudantes. Não encontrou uma única alusão. Mas havia mais uma data em que também valia a pena procurar: 19 de Dezembro de 1960. É o dia que Benenson refere na entrevista de 1962 à BBC como aquele em que o episódio do metro realmente se passou. Aqui encontrou qualquer coisa. O The Times desse dia noticiava que um homem e uma mulher tinham sido presos em Lisboa por participarem em "actividades subversivas".

É aqui que surge Bill Shipsey, um advogado que foi, durante os anos 80, membro da direcção da secção irlandesa da Amnistia Internacional e membro do conselho executivo internacional da organização e que hoje ainda está ligado à organização através da fundação que criou, a Art for Amnesty. O seu interesse por desvendar este mito fê-lo procurar qual o artigo do The Times que Buchanan falava em 2002. E chegou a dois nomes: Ivone Dias Lourenço e Rolando Verdial, ambos membros do Partido Comunista Português na altura. 

Investigadores holandeses chegaram ao mesmo nome e tentaram contactar Ivone Dias Lourenço, que recusou ser ela a inspiração para tal história. Porque, dizia, estava presa na altura e, além disso, a sua actividade na clandestinidade seria um assunto mais sério do que um mero brinde. 

Para o historiador Tom Buchanan este também não será o caminho. "Há uma série de coisas que se podem encontrar, mas isso não é o mesmo que achar os estudantes ou o artigo desaparecido." Além disso, a data de Dezembro (que Benenson só terá referido uma vez) não o convence. "Eu falei com pessoas que o conheciam na altura e não disseram nada sobre a data ser diferente. Todos operamos aqui numa posição de ignorância."

A historiadora Irene Pimentel, que tem uma tese de doutoramento sobre a PIDE entre 1945 e 1974, também tentou resolver o mistério. "Eu tentei ver nos arquivos da PIDE, no cadastro dos presos, se naquele período em que ele menciona [existia alguma correspondência] ", lembra ao PÚBLICO. Mas não encontrou nada. A hipótese que coloca é que o advogado britânico se tenha inspirado nos protestos de estudantes durante as comemorações da Implantação da República de Outubro de 1960. É um episódio que "não vem nos jornais portugueses, mas há testemunhos que falam nas manifestações de jovens em Lisboa".

Uma "inconsistência"

A existência do brinde ou dos estudantes nem será a questão fundamental para Tom Buchanan. No trabalho que assinou em 2002 (actualmente está a desenvolver um outro sobre as razões que estão na origem histórica da AI), interessava-lhe, sobretudo, "entender o desenvolvimento das suas [Benenson] ideias e pensamentos". E não tem dúvidas de que, seja qual for a origem deste mito: "É uma imagem muito poderosa." Também Irene Pimentel desvaloriza a questão e lembra que "a Amnistia foi muito importante no nosso país a partir dos anos 60 e até ao fim [da ditadura em Portugal]". 

Bill Shipsey, porém, tem sido vocal sobre estas incongruências. "Propomo-nos [AI] padrões muito elevados no que se refere à coerência dos nossos relatórios. E há uma inconsistência. Não acho que seja altamente prejudicial, mas é uma inconsistência", aponta. "Devíamos estar a brindar ao Peter Benenson e aquilo que ele alcançou."

Questionado pelo PÚBLICO, o director-executivo da Amnistia Internacional Portugal frisa que, quer este detalhe seja verdade ou não, uma coisa é certa: "O que nos move é a liberdade." E confessa que, quando lhe dizem que foi em Portugal que a organização nasceu, tende a "não alimentar" a questão.