Sentido de humor: “É de família...”

Júlia Pinheiro recorda o pai e fala de um “gene meio avariado” para justificar a aresta ácida mais divertida do filho, Rui Maria Pêgo. Saber rir e fazer os outros rir pode mesmo ser uma coisa de família, que o diga Rita Ferro, mãe de dois humoristas: Marta Gautier e Salvador Martinha.

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Itália, anos 1950. António Ferro era o embaixador de Portugal em Roma e a nora Paulina Quadros preparava-se para o acompanhar a uma festa, quando, à última hora, percebeu que não tinha levado chapéu, o que era imperdoável em termos de protocolo. O problema exigia uma solução rápida: roubou o abat-jour de um candeeiro da embaixada, entortou-o e levou-o na cabeça. “Estava linda — era linda! — e acho até que foi gabadíssima”, conta hoje a filha Rita Ferro. Fernanda de Castro, avó da escritora, já tinha histórias muito engraçadas, mas as da mãe eram imbatíveis. “Cresci com a convicção de que se pode fazer humor à custa de tudo. Até de uma árvore. A minha mãe tinha defeitos, alguns tão marcados que me condicionaram a infância; mas o que prevaleceu na minha memória, e isso já diz tudo sobre o humor, foi a graça que tinha. No que dizia e no que fazia. O humor, nela, obliterou e redimiu todo o seu lado negativo e tornou-a uma heroína aos meus olhos. Que outra característica consegue isto?”, pergunta.

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Itália, anos 1950. António Ferro era o embaixador de Portugal em Roma e a nora Paulina Quadros preparava-se para o acompanhar a uma festa, quando, à última hora, percebeu que não tinha levado chapéu, o que era imperdoável em termos de protocolo. O problema exigia uma solução rápida: roubou o abat-jour de um candeeiro da embaixada, entortou-o e levou-o na cabeça. “Estava linda — era linda! — e acho até que foi gabadíssima”, conta hoje a filha Rita Ferro. Fernanda de Castro, avó da escritora, já tinha histórias muito engraçadas, mas as da mãe eram imbatíveis. “Cresci com a convicção de que se pode fazer humor à custa de tudo. Até de uma árvore. A minha mãe tinha defeitos, alguns tão marcados que me condicionaram a infância; mas o que prevaleceu na minha memória, e isso já diz tudo sobre o humor, foi a graça que tinha. No que dizia e no que fazia. O humor, nela, obliterou e redimiu todo o seu lado negativo e tornou-a uma heroína aos meus olhos. Que outra característica consegue isto?”, pergunta.

Quer tenha sido recebida pelo sangue, ou adquirida pelo convívio, Rita Ferro assume essa herança com orgulho. “Socorro-me do humor para tudo. Ainda que esteja a viver um drama pesado”, garante. A capacidade de “descomplicar”, de gozar e a autocrítica são ferramentas que faz questão de utilizar no dia-a-dia e, reconhece, terão igualmente marcado a sua postura enquanto mãe. Que os dois filhos, Marta Gautier e Salvador Martinha, tenham enveredado por percursos que passam pelo stand-up e pelo registo cómico poderá ser mais do que uma coincidência. “Sem qualquer espécie de bazófia, não me custa a crer que o meu ‘gene’ humorista tenha sido passado aos meus filhos”, diz.

Também Júlia Pinheiro, mãe de Rui Maria Pêgo, locutor, radialista, actor, um comunicador que inscreveu o sentido de humor na sua assinatura, coloca a si própria a mesma questão, quando pensa no tom de brincadeira constante usado pelo seu pai: haverá uma transmissão genética ou cultural? 

O sentido de humor e a capacidade de satirizar são ainda um mistério para as neurociências. Sabe-se que, ao ouvir uma piada, no ponto absurdo da história, a região entre os dois hemisférios cerebrais reage ao erro e sincroniza o lógico e o ilógico da narrativa. E que é “nesse momento, ao detectar o erro, que o cérebro recebe uma ‘recompensa’ sob a forma de libertação de dopamina, hormona que provoca uma sensação de alegria que pode resultar numa gargalhada”, como explica a professora de Bioquímica e Biologia Molecular Natalia López Moratalla, da Universidade de Navarra, citada pela agência Efe. No entanto, todo o processo, no qual interferem a parte cognitiva e emocional do indivíduo, é de tal forma complexo que é difícil identificar as variáveis, distinguir o que poderá ser inato e/ou adquirido.

Júlia Pinheiro comenta que o filho “diz coisas absolutamente desconcertantes nos sítios mais bizarros do universo” e explica que a boa disposição corre na família. “Acho que há um gene meio avariado, sim. Um gene que não se comporta. Que não vai no mesmo sentido que os outros...”, diz, ao fim de alguma hesitação. “Com o meu pai era impensável ter uma conversa a sério, estava sempre a brincar. Eu e ele dávamos grandes bailes à minha mãe! Ela era autoritária, a figura da ordem e do respeito”, conta. Júlia herdou a descontracção paterna. “Quando a situação é mais difícil, brinco. Sou aquela pessoa que se desmancha sempre a rir nos funerais... e o meu filho é a mesma coisa. As minhas filhas são um bocadinho diferentes, mas todos temos uma certa tendência para o disparate. Ninguém se leva muito a sério.”

Desconstruir o real quotidianamente é uma necessidade para a apresentadora, em casa como na televisão, meio onde existe muita pressão em permanência. “Nos colectivos, se as pessoas não se divertem, se não trocam umas piadolas, o trabalho torna-se muito pesado e pouco estimulante. No nosso caso, vivemos em slots de dez, 15 minutos [entre directos], se não tivéssemos um grande jogo de cintura para fazer isto tudo, era horrível, vivíamos num sofrimento atroz”, defende.

Rotina familiar: fazer piadas

A psicologia tem vindo a demonstrar aquilo que o bom senso intui: o bom humor aumenta a resiliência e é um valor acrescentado em diversos cenários. “Os líderes bem-humorados são mais eficientes”, exemplifica Luís Miguel Neto, professor no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP). E há mais: “É muitíssimo interessante o trabalho que a investigadora espanhola Begoña Larrauri tem feito sobre a utilização do humor como veículo no contexto da aprendizagem. Ou ver como a homónima Begoña Baquero se apercebeu, durante a sua prática de enfermagem, da importância que o humor pode ter na relação com o paciente”, comenta o especialista, que é também membro da Comissão Científica da Associação Portuguesa de Estudos e Intervenções em Psicologia Positiva (APEIPP).

Rui Maria Pêgo é “ácido e abrasivo, que é como deve ser o humor”, nas palavras da mãe, que confessa ter-se sentido à beira de uma apoplexia antes da sua estreia como actor em Avenida Q, para logo depois aplaudir de pé, a rebentar de orgulho. Seriamente preocupada só ficou uma vez. Foi em 2016, quando o filho a convocou para a informar de que ia fazer para o canal Q o programa O Filho da Mãe, um reality show baseado na sua vida. “‘Não tem problema nenhum, mãe, só queria saber se permitias que eu gravasse no meu quarto’, disse-me ele. E eu pensei: ‘O quê?! Isto não está a acontecer...’ Mas não me quis meter em nada e ele lá fez aquilo...”, conta.

No dia da estreia, a família sentou-se no sofá e, quando o episódio acabou, Júlia Pinheiro diz ter ficado perplexa. O programa “era absolutamente inovador — e era muito desconcertante, porque de facto tinha ali uma fronteira ambígua e interessante sobre o que era verdade e o que era mentira e a forma como ele brincava com as vicissitudes todas; enfim, de ser o ‘filho da mãe...’. Liguei-lhe logo a seguir a dizer: ‘Está óptimo!’”

Luís Miguel Neto ressalva que, “embora o humor seja reconhecido por alguns investigadores como uma força de carácter importante, não é das emoções positivas mais estudadas. Sabe-se mais sobre a gratidão, a compaixão ou o optimismo”, diz. Apesar disso, não lhe custa acreditar que aquilo que o pioneiro da psicologia positiva Martin Seligman sugere em relação ao optimismo possa ser extrapolado para outras emoções benéficas, e que “o humor possa ser aprendido, treinado e trabalhado”.

Júlia Pinheiro confessa nunca ter pensado muito nisso. Fazer piadas com os pequenos nadas do dia-a-dia sempre fez parte da rotina familiar, e continua a fazer, mesmo com o filho fora, por SMS. “O Rui não poupa ninguém... No outro dia, precisava de um código para abrir uma porta e o pai enganou-se, queria dizer ‘liga para a recepção e pede o código’, mas saiu-lhe ‘liga para a redenção e pede o código’. A resposta foi imediata: ‘Acho excessivo ligar para a redenção só por causa de um código para entrar num sítio, mas se tu insistires...’ Isto é o meu filho.”

A família pode tornar-se, de facto, um centro de excelência da prática, no que ao humor diz respeito. Para Rita Ferro, percebe-se, é muito natural que assim seja. Ainda hoje recorda a vingança da mãe sobre a freira-enfermeira que a visitava nos cuidados paliativos e lhe falava sempre com diminutivos, era a “sopinha”, a “carinha mais animadinha”, etc. “Uma vez, quando a madre lhe perguntou se queria comer um ‘arrozinho’, a minha mãe vingou-se e pediu-lhe um gin tónico. Isto dias antes de morrer”, conta. Para falar sobre a graça dos filhos, a quem elogia por não terem herdado “aquele complexo tão português de entrarem numa sala encolhidos” —  “Endireitam as costas e aí vão eles” —, recua bem lá atrás.

A Marta, que é psicóloga clínica, além de fazer monólogos humorísticos, pratica desde pequenina exercícios de nonsense. Um exemplo? “‘O que é que a mãe preferia? Ter uma barba que nunca pudesse rapar ou uma tatuagem na testa a dizer: Não vivo sem sexo?’ Ainda hoje me tortura com estas perguntas...”, recorda. Salvador também começou cedo e foi sempre incentivado. Aos sete anos já agarrava no primeiro objecto que encontrava para fazer de microfone e entrevistar a mãe. “Eram boas entrevistas, astutas e hilariantes. Ficava parva com ele”, conta Rita Ferro.

O humor de ambos, embora diferente, toca-se muitas vezes num ponto: a crítica a um determinado grupo social, privilegiado, que é o seu. “Eu sou uma dissidente do meio, mas os meus filhos ainda são mais. Como disse, com tanta graça, o cantor Salvador Sobral a respeito de si mesmo, são, também eles, ‘betos em negação’”, explica Rita Ferro, a rir. “Castigam-me com uma troça permanente relativamente ao meio em que nasceram”, conta. “Por exemplo, na minha tribo, chamemos-lhe assim, ninguém pronuncia sofá dizendo ‘sufá’, como agora se ouve. Dizemos ‘sófá’, acentuando as duas vogais, porque a palavra é, na realidade, um anglicismo. No outro dia, surpreendi o Salvador a dizer ‘sufá’ e perguntei-lhe a rir se ele já tinha sido contaminado pela fonética ‘plebeia’. Respondeu-me: ‘Passei a dizer ‘sufá’ porque quando acentuo a primeira sílaba ninguém sabe do que estou a falar.’ E fazendo um ar dramático: ‘Tem de ser forte, mãe: desisti!...’”

Mães e psicólogo estão de acordo: falta muito humor nas famílias portuguesas. “Fazem drama de tudo. A vida é um drama. A menstruação é um drama. Os nervos são um drama. As varizes são um drama. Um simples equívoco no serviço é um drama...”, comenta Rita Ferro.

Falta capacidade de encaixe, sentido de autocrítica — e é preciso isso tudo para se conseguir rir de si próprio e dos outros. O que pode não ser nada fácil quando em cima do palco estão os filhos, mas Rita Ferro consegue-o. “Rio-me à gargalhada, mesmo quando estão a gozar comigo. E quando o Salvador diz palavrões no palco, por exemplo, e isso, de certa forma, me confrange, engreno a rir convulsivamente à revelia de mim mesma. Um dia escondi-me debaixo da cadeira para não ser vista a rir com aquilo que dizia. Mas sei porquê. De alguma forma, penso: ‘Quebraram as grilhetas. Conseguiram quebrar todas as grilhetas!’ E sinto verdadeira admiração. E respeito. É como se me vingassem.”