A observação do mundo dançada e cantada com a ajuda de Calvino

A partir de Palomar, de Calvino, Clara Andermatt e João Lucas instalam no Teatro São Luiz, de 22 a 25 de Novembro, a simplicidade e a complexidade do planeta. Parece que o Mundo leva mais longe o encontro entre dança e música que os dois vêm assinando em parceria desde 1993.

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No livro de Italo Calvino que acompanha Clara Andermatt em cada passo da criação de Parece que o Mundo, há uma anotação sua entre as muitas rabiscadas páginas que poderia resumir tudo aquilo que tem trabalhado com João Lucas ao longo dos últimos meses. Um risco a lápis destaca e isola o excerto em que o autor italiano escreve “E talvez pudesse ser essa a chave para dominar a complexidade do mundo, reduzindo-a ao seu mecanismo elementar”. O destaque está acompanhado de um simples comentário da coreógrafa: “É a peça”. O que equivale a dizer que essa foi também a chave em que todos os exercícios com o elenco tentaram encaixar. O objectivo a atingir seria sempre a convivência simultânea da complexidade e da simplicidade em palco – uma sempre a puxar a outra, uma a lembrar a outra, como dois corpos que se agarram e não permitem a fuga do outro. Mas em harmonia e não em choque.

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No palco movimentos e som enlaçam-se a todo o momento, aos músicos é pedida uma enorme disponibilidade física e aos bailarinos uma grande entrega musical rui gaudêncio

No livro de Calvino, imediatamente antes desta frase, o senhor Palomar dedica-se à observação rigorosa das ondas, um exercício com o potencial de poder “salvá-lo da neurose, do enfarte e da úlcera gástrica”. No caso de Clara Andermatt e João Lucas, não é bem o antídoto contra essas maleitas que promove a atracção por tal jogo de contrários – em que o mundo “parece de uma simplicidade e é de uma vastidão, e parece de uma vastidão e é tão simples”, resume a coreógrafa. Mas é a partir do exemplo de Palomar, a obra literária, que os dois desenvolvem uma sequência de observação, análise e atenção às coisas que, ao mesmo tempo, não faz destas “um monstro que tece uma teia e nos impede de actuar de forma simples”. E é assim que vemos músicos e bailarinos em palco tornarem-se tartarugas copuladoras, osgas vegetantes ou estorninhos num bailado nervoso, é assim que vemos um homem (Palomar?) a identificar e a reagir aos sons da Natureza. Como na mais pura simplificação de um mundo demasiado complexo para ser explicado.

Foi também por isso que Clara Andermatt e João Lucas, cúmplices desde 1993 e da peça Cio Azul (e que apresentarão Parece que o Mundo no Teatro São Luiz, Lsiboa, entre 22 e 25 de Novembro), eliminaram todos os vestígios de texto que existiam ainda há três semanas, quando o Ípsilon visitou um ensaio no espaço da Musibéria, em Serpa, onde o grupo realizou uma residência artística de uma semana (que se seguiu a uma outra, n’O Espaço do Tempo, em Montemor-o-Novo, quando se iniciaram os trabalhos). Nessa ocasião, parte considerável da tarde concentrar-se-ia na composição de uma cena em que os intérpretes se dispunham à volta de uma mesa e iniciavam uma palavrosa sequência em que os seus discursos físicos e falados passavam de um para outro como peças de dominó em queda sequencial.

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A mesa seguiu o mesmo destino das palavras e desapareceu. Ficou como fantasma. Músicos e bailarinos colocam-se agora num semi-círculo a que falta um ponto de gravitação visual. Mas a dinâmica entre os sete mantém-se inalterada. Mais do que as palavras, na verdade, Andermatt e Lucas livraram-se de tudo aquilo que era explicativo e explícito, e encaminharam a peça para um tom mais sugestivo e abstracto, oferecendo mais espaço ao espectador para criar a sua própria viagem. Daí que, embora Palomar seja um ponto de partida assumido para a criação – todo o elenco leu várias vezes o livro; todo o trabalho de figurinos, cenário e luzes segue perspectivas sobre a obra; cada uma das dúvidas fundamentais no processo criativo encontrou resposta nas páginas de Calvino –, a sua leitura seja dispensável para estabelecer uma relação com Parece que o Mundo. É até preferível não olhar a peça com um bloco de notas na mão ou mental, em busca de pistas que podem ou não estar lá.

O recuo em relação à cena da mesa aconteceu também após o ensaio aberto ao público que culminou a semana de residência em Serpa. Nessa sessão, Clara Andermatt e João Lucas começaram por contextualizar a peça numa conversa com os espectadores, acabando por “resvalar” para “particularidades do livro bastante concretas”, mesmo se em relação com aspectos mais amplos relativos “ao cosmos e ao infinito, e a coisas mais mundanas e triviais, como uma loja de queijos”. Perceberam então que houve quem tivesse passado toda a peça a tentar identificar o momento em que uma loja de queijos apareceria traduzida em palco. E essa seria a postura exactamente contrária àquela que pretendem criar em Parece que o Mundo: deve o público criar a sua própria narrativa na colagem dos vários fragmentos e não procurar ver na peça aquilo que os criadores dizem estar lá.

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Clara Andermatt e João Lucas, cúmplices desde 1993, apresentarão Parece que o Mundo no Teatro São Luiz, Lisboa, entre 22 e 25 de Novembro rui gaudêncio
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Palomar como dispositivo dramatúrgico

Palomar há muitos anos que está na cabeceira de João Lucas. O músico e compositor, actualmente a viver no Brasil (onde trabalha como investigador e se encontra em doutoramento na Universidade de Brasília), leu o último livro de Calvino nos anos 80, “mais ou menos na mesma altura” em que primeiro se cruzou com Clara Andermatt. O seu entusiasmo com a obra era de tal forma contagiante que a coreógrafa também não tardou a atirar-se à leitura – “Porque ele me falava muito do livro e o colocava num sítio muito mágico”, explica –, mas sem sucumbir ao mesmo feitiço. Isso só viria mais tarde.

Depois de investigar acerca de colaborações artísticas entre a composição musical e a composição coreográfica no seu mestrado, Lucas prolongou esse gesto agora no doutoramento e adoptou o esquema conceptual de Palomar como dispositivo dramatúrgico ou de composição que pudesse ser aplicado noutros contextos para além do livro. E isto porque os 27 contos que compõem Palomar se distribuem por três grandes zonas, por sua vez retalhadas em três temáticas, por sua vez divididas em três contos. Destes, os primeiros focam-se na observação; os segundos na criação de uma narrativa que assenta em elementos antropológicos e culturais; os terceiros assumem a forma de especulação ou meditação.

Como o projecto de doutoramento de João Lucas prevê a aplicação prática da sua teoria a uma criação de colaboração entre música e dança (em que as duas disciplinas são pensadas como uma só), quando Clara Andermatt o desafiou, uma vez mais, a trabalharem juntos numa nova peça, a sua aceitação vinha acrescentada de uma dimensão de trabalho de campo. E foi a coreógrafa, que já andava a querer partir de um texto ou de algo concreto como motor de uma nova criação, a pôr fim à indecisão das primeiras conversas sobre o rumo a tomar quando sugeriu juntarem aquilo que estavam a fazer nas suas vidas e trazerem esses elementos para “a circunstância criativa”. No caso de João Lucas, essa proposta apanhou-o “em plena luxúria calviniana”. E a partir daí, foi fácil recorrerem ao autor italiano para estruturar a peça, procurando nele “uma metodologia, um dispositivo”.

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Muito do trabalho desenvolvido na primeira residência, em Montemor, seguia já as três questões essenciais de Palomar, assim resumidas por Lucas: “a interrogação do mundo a partir de um olhar e o atrito que gera com o mundo; a conjugação de observações que se transforma numa narrativa e joga com símbolos e significados; e o que daí diverge para um pensamento mais abstracto e que tem que ver com especulação filosófica”. Essa partilha de balizas concretas criou um estado colectivo em que, diz a coreógrafa, “os intérpretes sabem sempre muito bem o que estão a fazer e de onde as ideias vêm”. Mesmo que, de início, alguns tenham manifestado “alguma rejeição ao livro”. “Depois, à medida que fomos dissecando, lendo em conjunto, explicando e percebendo o que queria dizer para nós e para o outro, começámos a alcançar uma linguagem comum”, descreve Clara Andermatt.

Música e dança num só

Respeitando a natureza fragmentária de Palomar, os bailarinos Ana Moreno, Felix Lozano, Jolanda Löellmann e Liliana Garcia juntam-se aos músicos Gil Dionísio (dos grupos Criatura e Pás de Problème), Joana Guerra (autora de Cavalos Vapor) e João Madeira (da Variable Geommetry Orchestra) num palco em que movimentos e som se enlaçam a todo o momento, em que aos músicos é pedida uma enorme disponibilidade física e aos bailarinos uma grande entrega musical. “Logo desde as audições quisemos que as coisas estivessem de tal forma entrosadas que não se percebesse quando se inicia o movimento ou o som, ou de onde partiu cada um”, explica a coreógrafa.

É uma justaposição de discursos que, na verdade, espelha aquela que tem sido a tendência crescente da colaboração entre Andermatt e Lucas. E que decorre da conclusão de que, em 2017, quando os dois criaram A Banda para o festival Materiais Diversos, dirigindo uma banda filmarmónica fantasmática que se movia como se uma fanfarra felliniana composta por vivos e mortos desfilasse em palco, deixara de fazer sentido pensar que ela se ocupava do movimento e ele da música. Cada vez mais, as suas vozes começaram a assumir os dois campos por inteiro, a tratá-los como uma só matéria que, simplesmente, dispunha de ferramentas ampliadas.

Para isso contribuiu também a situação de residência artística permanente que significou estarem juntos 24 horas por dia, durante um mês, a pensar em A Banda e a terem de superar “um processo árduo, complicado, difícil, mas que se revelaria super luminoso para os dois”. E isto porque as duas horas diárias de ensaio com músicos amadores requeriam “dias inteiros de planeamento, estratégia, tentativa e imaginação” que, com frequência, esbarravam na frustração porque o grupo de participantes nunca era o mesmo duas noites seguidas. As circunstâncias obrigaram-nos a eliminar barreiras entre movimento e música, por forma a juntarem as cabeças e descobrirem soluções em conjunto. “Foi de tal forma”, sustenta João, “que apareceu o desejo de fazer o mesmo numa situação de maior potencialidade.” “Mais sustentada no tempo, com pessoas escolhidas por nós”, acrescenta Clara.

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Essa linguagem una que agrega música e dança evidencia-se agora em Parece que o Mundo, por exemplo, num belíssimo solo de Joana Guerra, em que a intérprete abraça o seu violoncelo com uma intensidade de amor maternal, de quem protege e se funde no outro, para depois soltar uma voz que começa por ser coisa de primata mas acaba por soar a experimentalismo via Meredith Monk e Laurie Anderson, mas cujo rastilho inicial se encontra mesmo num dos contos de Calvino. É resultado de todo um trabalho por camadas aplicado em vários quadros, em que Clara e João vão partindo de propostas do elenco, propondo posições e sonoridades – neste caso, dizendo que se alape ao violoncelo como agarraria um pneu, que explore a sonoridade de uma mastigação – e em que, quase sem se darem conta, passam da observação para a narrativa, até terminar na “especulação que é a deles, dos intérpretes”. “Queremos que eles atinjam a sua expressividade e que a expandam, dentro de algo concreto que lhes faça sentido, e que vai crescendo segundo uma razão, um significado e um caminho.”

A relação criada em cena com violoncelo, violino e contrabaixo é tão intensa que, na verdade, os olhos são levados ao engano e convencem-nos de que estes instrumentos são eles próprios corpos, maleáveis, transformáveis, elásticos, reclamando uma presença que jamais se suporia de objectos de madeira que conhecemos desde sempre. Seja pela forma como os músicos os tocam quando são arrastados pelo chão, pela forma como os manuseiam enquanto extensão de si mesmos, pela forma como são colocados em repouso sobre os seus corpos estendidos no solo ou pela forma como os tratam sem piedade. “Logo na primeira audição”, recorda Clara a propósito do contrabaixista João Madeira, “quando ele levanta, faz, esconde, agarra aquele instrumento enorme, parece que não tem medo de que aquilo se parta.” E da maneira como quase o espanca em palco, não deve ter mesmo.

Em suspenso

Antes de assentar neste título suspenso – Parece que o Mundo –, como que abuptamente cortado ou órfão de reticências, o espectáculo de Clara Andermatt e João Lucas chamou-se O Mundo Observa o Mundo (nome de um dos contos finais de Calvino), estagiou na versão encurtada O Mundo (demasiado vasta e pomposa) e, finalmente, fixou-se na designação actual. Parece que o Mundo, que só acidentalmente evoca o também suspenso livro de Calvino Se Numa Noite de Inverno Um Viajante, mantém “a ideia da observação e de indeterminação”, diz João Lucas, que os dois quiseram preservar enquanto guarda-chuva para uma peça delirante – “É um bocado bizarro”, comenta em Serpa uma das bailarinas relativamente ao chapéu que lhe é dado a experimentar; Clara Andermatt responde-lhe que “bizarro é tudo isto”.

Na verdade, Parece que o Mundo foi uma frase que Clara Andermatt partiu ao meio quando João Lucas lhe lia um texto da sua autoria. “É engraçado como as coisas surgem”, reflecte a coreógrafa, “porque há momentos da nossa colaboração – que vive também de uma relação de amizade grande e partilha de várias coisas da vida – em que outras coisas surgem, vindas de conversas sobre a vida, sobre nós, e sobre nós e os outros.” Ao isolar esse pedaço de frase, de repente, os dois encontravam a peça: “É o que cada um sente que é e não é, é o que cada um vê e pensa que vê mas não é o que está a ver, o que eu vejo e que o outro não vê. Este constante questionamento em relação às coisas e a maneira como nos posicionamos em relação a elas”, dizem.

“A distância entre o sujeito e o objecto, que é o mundo, é múltiplo e virtualmente infinito”, argumenta João Lucas. Daí que não permita qualquer tipo de fechamento, não autorize declarações enfáticas e taxativas – e, por consequência, excludentes. O mundo é muitas coisas, tantas quantos os pontos de vista, mas também por isso não “é” e apenas parece. Parece que o Mundo, no título, diz-nos aquilo que a peça nos mostra em cada segundo: que esta responsabilidade de criar uma narrativa delegada no espectador, como forma de completar o triângulo de dimensões propostas por Calvino, tanto investe esse olhar pessoal de uma importante verdade, como a reduz, ao mesmo tempo, ao seu alcance meramente pessoal.

O mundo é demasiado complexo e demasiado simples. E às vezes, como aqui acontece, é belissimamente as duas coisas ao mesmo tempo e sem distinção.