Socialismo!

O Estado já sangra de mais o contribuinte e já se intromete de mais na vida privada de cada um: faltava este acrescento socialista.

Em 1906, João Chagas proclamava, em As minhas razões, que precisamente porque era democrata é que não era liberal. Muito antes dele, em 1851, no artigo A desigualdade e a democracia, Alexandre Herculano proclamava exactamente o contrário: a desigualdade era “condição absoluta e indestrutível das agregações humanas”, e por isso definia-se como um liberal, e não como um democrata. Um liberal tem ou deve ter a lucidez de saber que há valores humanos e sociais possivelmente tão belos e desejáveis uns como outros, mas que conflituam irremediavelmente entre si. A antinomia entre liberdade e igualdade é um dos exemplos mais gritantes desse conflito de valores. O liberal não retira daqui a ilação de que todos os valores sejam essencialmente relativos, mas sim de que vivemos num mundo moral e político que se nos oferece como um pluralismo de valores que temos de conciliar ou de hierarquizar segundo critérios morais e ideológicos rigorosamente equacionados. O liberal, por conseguinte, vive na muito incómoda condição de permanente incerteza moral. Um problema que não se coloca quando as grandes visões despóticas da sociedade e do mundo — como o comunismo ou o nazismo — impõem dogmaticamente, a bem ou à força, a sua ordem de prioridades, a que toda a existência social e humana se deve subordinar.

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Em 1906, João Chagas proclamava, em As minhas razões, que precisamente porque era democrata é que não era liberal. Muito antes dele, em 1851, no artigo A desigualdade e a democracia, Alexandre Herculano proclamava exactamente o contrário: a desigualdade era “condição absoluta e indestrutível das agregações humanas”, e por isso definia-se como um liberal, e não como um democrata. Um liberal tem ou deve ter a lucidez de saber que há valores humanos e sociais possivelmente tão belos e desejáveis uns como outros, mas que conflituam irremediavelmente entre si. A antinomia entre liberdade e igualdade é um dos exemplos mais gritantes desse conflito de valores. O liberal não retira daqui a ilação de que todos os valores sejam essencialmente relativos, mas sim de que vivemos num mundo moral e político que se nos oferece como um pluralismo de valores que temos de conciliar ou de hierarquizar segundo critérios morais e ideológicos rigorosamente equacionados. O liberal, por conseguinte, vive na muito incómoda condição de permanente incerteza moral. Um problema que não se coloca quando as grandes visões despóticas da sociedade e do mundo — como o comunismo ou o nazismo — impõem dogmaticamente, a bem ou à força, a sua ordem de prioridades, a que toda a existência social e humana se deve subordinar.

A liberdade individual e colectiva é para mim o supremo valor, o que explica a minha aversão ao estatismo. Porém, a vida em sociedade obriga a definir limites dentro dos quais ela se pode exercer. Pagar impostos, por exemplo, é uma forma de o Estado limitar a nossa liberdade. Mas a ninguém em seu pleno juízo ocorreria negar a necessidade de tais impostos, desde que não sejam tão gravosos que configurem um confisco. Portanto, o problema é uma questão de limites, ou seja, de razoabilidade. Em Portugal, a carga fiscal não é razoável, é notoriamente excessiva. Isto condiciona a liberdade pessoal muito para além do aceitável, sobretudo tendo em conta o pouco que se recebe em troca — serviços públicos escassos e maus. Dir-se-á que nos países nórdicos a carga fiscal é mais elevada do que em Portugal. Sim, mas ali os salários são muito mais elevados, e as contrapartidas que o Estado oferece não têm qualquer comparação com o que nós recebemos de um Estado cuja punção fiscal roça o confisco e que em troca não nos assegura uma velhice decente, ao contrário do que acontece na Suécia, Noruega, Finlândia ou Dinamarca. Os cidadãos nórdicos pagam muito, mas ganham muito e recebem muito do Estado. O contrário de nós, portugueses.

Vem isto a propósito das medidas previstas no Orçamento do Estado de 2019 para fomentar a oferta de habitação. Já sabíamos que os socialistas são muito pródigos com o dinheiro dos outros, mas o que neste OE se perfila é muito mais do que a habitual “prodigalidade”: é um claro abuso de poder, uma intrusão indecente na vida privada de cada um, uma violação dos direitos de propriedade privada. A 20 de Outubro, o Expresso titulava: “O IMI dos prédios devolutos é agravado até 12 vezes a taxa em vigor.” Por trás deste arrojo existe um plano para promover soluções habitacionais à custa dos privados, porque ao Estado não chegam as receitas fiscais para acomodar o direito constitucional à habitação. Aliás, um direito estupidamente inserido na Constituição, como muitos dos direitos que por lá pululam e igualmente se não satisfazem, pelo simples motivo de que não podem ser satisfeitos; como o “direito ao trabalho”, por exemplo, que depende da economia e do mercado, e não da vontade dos governantes. E como o direito à habitação (art.º 65): “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto, etc.” Como o dinheiro não é elástico, apesar da indecorosa punção fiscal que o Estado exerce, o Governo não hesita e introduz no OE de 2019 medidas draconianas, abusivas e, já agora, inconstitucionais, para ajudar a resolver o que lhe competiria resolver.

O PÚBLICO de 17 de Outubro interrogava: “Tem prédios sem consumo de água e luz?” E na mesma passada respondia: “O Governo vai forçar o arrendamento.” Como? Mediante um aumento brutal do IMI sobre prédios devolutos. Se mesmo assim os proprietários não se dispuserem a fazer obras e a arrendar o que é deles, o OE de 2019 prevê “uma série de mecanismos legais” que vão desde “posses administrativas” e possíveis “nacionalizações” até obras e arrendamentos coercivos, cujo produto seria arrecadado pelo Estado até à recuperação do investimento que lá teria realizado.

O Estado ultrapassa aqui o limite do legítimo. Estamos perante um conflito entre valores. É desejável, numa sociedade decente, que todos tenham uma habitação. Este é um valor, sem dúvida. Mas então os impostos indecorosos que pagamos não se destinam, precisamente, a garantir a decência da nossa sociedade? E pode o Estado violar os direitos de propriedade privada e assenhorear-se do que é meu, ou decidir que destino devo dar ao que é meu? É intolerável que o Estado se intrometa na vida privadíssima de cada um, para o efeito de cumprir os deveres que lhe estão constitucionalmente cometidos. Isto é socialismo. Uma agradável perspectiva que, a evoluir no mesmo sentido, acabaria, muito coerentemente, por desembocar na determinação, pelo Estado, dos metros quadrados a que tenho direito para habitar; e dos metros quadrados que sou forçada a lançar no mercado de arrendamento. E se não quiser ou não puder vender nem arrendar um prédio devoluto que herdei ou comprei?

Neste confronto entre valores e interesses, prevalece para mim a liberdade de dispor do que é meu. O Estado já sangra de mais o contribuinte e já se intromete de mais na vida privada de cada um: faltava este acrescento socialista, que viola os direitos da liberdade individual e da propriedade privada, lembrando os tristes tempos do gonçalvismo. Depois de os fornecedores de água, gás e electricidade serem obrigados a denunciar casas sem consumos, como está previsto, já só faltam as comissões de moradores para identificar e ocupar os imóveis devolutos. Tenho pena, mas o direito à habitação inscrito no art.º 65 da Constituição deve ser satisfeito pelo Estado com as receitas dos impostos que todos pagam — incluindo os proprietários de prédios devolutos.

(Declaração de interesses: não possuo prédios devolutos)