Dois bailarinos, uma artista plástica e uma dança feita de restos

Onde Está o Casaco?, espectáculo em estreia no festival Circular, esta sexta-feira em Vila do Conde, é uma colaboração entre João dos Santos Martins, Cyriaque Villemaux e Ana Jotta.

Foto
José Costa

Há cerca de um ano, João dos Santos Martins (n.1989), coreógrafo e bailarino, apareceu em casa de Ana Jotta (n.1946), artista plástica, e foi amor à primeira vista. “Fiquei muito contente quando o João me convidou para trabalhar com ele. Gostei logo muito dele.” É assim, resumidamente e carinhosamente, que Ana Jotta, um dos nomes mais importantes da arte contemporânea portuguesa, descreve o primeiro de muitos encontros que viriam a resultar em Onde Está o Casaco?, espectáculo em estreia absoluta, esta sexta-feira às 21h30, no Auditório da Santa Casa da Misericórdia de Vila do Conde, integrado na recta final da 14.ª edição do Circular – Festival de Artes Performativas, co-produtor desta peça juntamente com a instituição francesa CND – Centre National de de la Danse.

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Há cerca de um ano, João dos Santos Martins (n.1989), coreógrafo e bailarino, apareceu em casa de Ana Jotta (n.1946), artista plástica, e foi amor à primeira vista. “Fiquei muito contente quando o João me convidou para trabalhar com ele. Gostei logo muito dele.” É assim, resumidamente e carinhosamente, que Ana Jotta, um dos nomes mais importantes da arte contemporânea portuguesa, descreve o primeiro de muitos encontros que viriam a resultar em Onde Está o Casaco?, espectáculo em estreia absoluta, esta sexta-feira às 21h30, no Auditório da Santa Casa da Misericórdia de Vila do Conde, integrado na recta final da 14.ª edição do Circular – Festival de Artes Performativas, co-produtor desta peça juntamente com a instituição francesa CND – Centre National de de la Danse.

Esta não é a primeira vez de Ana Jotta nas artes performativas, mas há já 30 anos que não trabalhava directamente com o meio. Regressa agora como figurinista e “decoradora” (não gosta da palavra cenógrafa), para um espectáculo que é, na verdade, uma história a três. A ela e a João dos Santos Martins junta-se o coreógrafo e bailarino francês Cyriaque Villemaux (n.1988), cúmplice de longa data do coreógrafo português, com quem criou Autointitulado (2015), peça que é, em muitos sentidos, o embrião deste novo trabalho.

“Este projecto surge na continuidade do Autointitulado. Eu e o Cyriaque estávamos muito interessados em trabalhar sobre a ideia de sobra, de resto”, introduz João. Há um processo de reciclagem, desconstrução e descontextualização de coreografias do trabalho anterior, aqui “refeitas” com “outros condicionamentos espaciais e temporais, que criam uma espécie de monstro coreográfico, sem ponta por onde se lhes pegue”. “São rabiscos, quase. São restos de coisas que estão de tal modo amalgamadas e descontextualizadas que são uma forma desconexa”, explica João dos Santos Martins, um dos vários criadores que o Ípsilon apontou em Março como obrigatórios a acompanhar nas artes portuguesas nos próximos anos.

Onde Está o Casaco? lida também com os “restos de uma castração da educação em dança”, aponta João, que desde cedo estabeleceu nas suas criações uma relação discursiva e crítica com o cânone da dança e as tipologias de corpos muitas vezes preconizadas pelos sistemas de ensino dessa área. “É difícil conseguires desligar-te da forma como o teu corpo foi educado para fazer determinadas coisas, mas queres desprender-te totalmente disso porque não faz parte da conceptualização que queremos fazer do nosso próprio corpo ou de como queremos dançar.”

Os figurinos de Ana Jotta constituem uma clara referência à dança moderna americana – são maillots de corpo inteiro, uniformes característicos desse período. Contudo, dentro da coreografia, considera João, “não há nada” que se consiga reconhecer plenamente, ao contrário do que acontecia em Autointitulado. “Pode haver coisas que se aproximam de alguma linguagem, ou que te façam lembrar algo, mas estão muito desmanteladas”, assinala o coreógrafo. “Os conceitos” são desincorporados para se “tornarem carne” (também por isso, os maillots são semitransparentes), sem estarem “marcados no tempo e no espaço”. “A forma como interpretamos os movimentos é mais prístina e limpa, é mais como se fosse um recreio”, diz, por sua vez, Cyriaque Villemaux. Existe, aliás, um “espírito pueril” no espectáculo, nota João, em boa parte inspirado pelo filme Zero em Comportamento (1933), do realizador francês Jean Vigo, em que “um grupo de alunos de um internato religioso se revolta contra os padres”.

Num plano distinto dos corpos estão as obras que Ana Jotta concebeu e fabricou para o projecto: além de uma cortina usada como pano-de-boca, há dois “fundinhos”, como faz questão de lhes chamar, que ela própria movimenta enquanto maquinista de cena. “O que eu faço não tem a ver com os corpos, não é a mesma conversa dos corpos deles”, refere a artista. Qual é então a relação entre tudo? “A ligação é a falta, o buraco”, responde João dos Santos Martins. “Essa ausência é a potência de qualquer coisa que está sempre ali em tensão.” Dito isto, e tendo em conta o título da peça, é bem provável que nunca encontremos o tal casaco.