Elevar acima do quotidiano

Um diário de viagem que transcende os lugares e as considerações sobre os mesmos, e se transforma num exercício escrito de descoberta pessoal.

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Rilke é apenas uma vez mencionado directamente no diário de viagem de Lou Andreas-Salomé

Este “diário de viagem” da romancista (também psicanalista, filósofa e poetisa) Lou Andreas-Salomé (1861-1937), inicia-se em finais de Abril de 1900, em Moscovo, e termina, várias cidades russas depois (com passagem por alguns lugares finlandeses), em Agosto do mesmo ano. Louise von Salomé (nome civil) nasceu em São Petersburgo e viveu a infância e a juventude no seio de uma comunidade de emigrados alemães na Rússia (a mãe era de origem alemã e dinamarquesa, e o pai um general do Estado-Maior do czar Alexandre II). Após a morte do pai, e depois de ter estudado teologia, filosofia e literatura com um pastor holandês (que muito a marcou intelectualmente), emigrou com a mãe para Zurique (onde existia a única universidade europeia que aceitava mulheres, e aí se doutorou em Filosofia). Aos 21 anos conheceu Nietzsche e um outro filósofo alemão, Paul Rée: mantiveram durante algum tempo um triângulo amoroso. Dez anos depois de se ter casado com o linguista Friedrich Carl Andreas (com quem se manteria casada durante mais de quarenta anos), conheceu o poeta e escritor Rainer Maria Rilke — esta relação amorosa durou três anos, mas a amizade entre ambos durou a vida toda. Data dessa época a viagem à Rússia com Rilke — que apenas uma vez é mencionado no diário, e apenas com a inicial ‘R’, as restantes referências escondem-se por detrás de um ‘nós’ anónimo.

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Este “diário de viagem” da romancista (também psicanalista, filósofa e poetisa) Lou Andreas-Salomé (1861-1937), inicia-se em finais de Abril de 1900, em Moscovo, e termina, várias cidades russas depois (com passagem por alguns lugares finlandeses), em Agosto do mesmo ano. Louise von Salomé (nome civil) nasceu em São Petersburgo e viveu a infância e a juventude no seio de uma comunidade de emigrados alemães na Rússia (a mãe era de origem alemã e dinamarquesa, e o pai um general do Estado-Maior do czar Alexandre II). Após a morte do pai, e depois de ter estudado teologia, filosofia e literatura com um pastor holandês (que muito a marcou intelectualmente), emigrou com a mãe para Zurique (onde existia a única universidade europeia que aceitava mulheres, e aí se doutorou em Filosofia). Aos 21 anos conheceu Nietzsche e um outro filósofo alemão, Paul Rée: mantiveram durante algum tempo um triângulo amoroso. Dez anos depois de se ter casado com o linguista Friedrich Carl Andreas (com quem se manteria casada durante mais de quarenta anos), conheceu o poeta e escritor Rainer Maria Rilke — esta relação amorosa durou três anos, mas a amizade entre ambos durou a vida toda. Data dessa época a viagem à Rússia com Rilke — que apenas uma vez é mencionado no diário, e apenas com a inicial ‘R’, as restantes referências escondem-se por detrás de um ‘nós’ anónimo.

Logo desde o início, o que emerge destas páginas não é a descrição (por vezes pormenorizada) das paisagens, dos lugares visitados ou dos objectos expostos em museus e igrejas, mas a leitura social (e não só) que Lou Andreas-Salomé faz das condições em que, por exemplo, algumas obras de arte foram produzidas. Há ainda uma outra singularidade: a maneira como ela se projecta — parecendo tentar quase sempre descobrir-se, e elevar-se acima do quotidiano — numa dimensão religiosa que transcende os objectos descritos, a criação artística, e os próprios artistas. Consciente do acto criativo e da sua natureza, Andreas-Salomé entrega-se a exercícios de escrita que parecem emanar de uma vontade clara de cimentar para si própria uma certa maturidade que sentia estar a chegar durante aquela viagem (que era também uma viagem de regresso a um tempo vivido naquela Rússia, que havia anos tinha deixado — por vezes, parece escrever como se a amedrontasse olhar para trás, pelo sentimento de perda que daí advém). “Aquilo a que tantas vezes chamámos o paganismo da arte talvez seja a religião antiga e autêntica que ela encerra e que só encontramos na piedade da nossa infância e no deslumbramento da contemplação: na consciência de que o exterior e o interior são o mesmo e de que toda a fé assenta nessa unidade.” Desta maneira, as suas preocupações sobre crença, religião, Deus, arte, preconceitos sociais, plenitude de vida e moral, acompanham todas as páginas deste diário.

Durante esta viagem com Rilke, e logo no início, em Maio, ambos visitaram Tolstoi, “um pequeno camponês enfeitiçado, um ser mágico”, que lhes provocou “uma impressão tão estranha e espiritual, tão impressionante e comovedora, como se se tratasse de alguém que já não pertencia a este mundo”. Esta visita a Tolstoi, e o passeio que deram com ele, trouxe a Andreas-Salomé recordações da sua infância, e com isso a descoberta do motivo da melancolia que sempre a assaltava ao partir para o campo. São estas breves notas que por vezes dão ao texto — ou a algumas páginas – uma espécie de janela para uma “intimidade” que, na maioria das vezes, está disfarçada com a cortina de um pensamento filosófico mais profundo, sobretudo na última parte do livro, mas que não deixam de ser divagações que têm a autora sempre como objecto principal.

São várias as diatribes que Lou Andreas-Salomé faz à igreja russa, nunca poupando nas palavras para a descrever. Mais do que os rituais cumpridos pelo povo, a crença cega e a submissão dos pobres, desagrada-lhe a dimensão fortemente política e consciente dos homens da igreja. “Quando se vê a forma como este povo procura consolo e cura para os seus males nas pias de água benta sujas e nos santos beijados até mais não, compreende-se de repente que toda esta entidade espiritual não é apenas um símbolo que sobrevive, mantendo vivo para a gente humilde o sentido do transcendente na vida quotidiana, mas, acima de tudo, uma instituição viva, dirigida por homens, organizada e mantida com objectivos humanos, políticos e de poder, que desvia uma quantidade de recursos financeiros e espirituais de fontes nutritivas mais válidas. Privar disto o povo talvez seja arriscado, mas manter este estado de coisas pode ser ainda mais perigoso.”

A vertente política do povo russo, naqueles anos, e os movimentos que parecem tornar já inevitável a mudança que se viria a dar com a revolução bolchevique de 1917, não passa despercebida a Andreas-Salomé, pois são múltiplas as referências que lhe faz, como neste aparente paradoxo: “Os russos são fundamentalmente mais individualistas e, precisamente devido a isso, têm uma mentalidade mais comunista: sentem-se fraternalmente iguais, porque cada um tem para si um valor igual (…).”