Pode um louco deixar a fortuna à Unicef? Se estiver lúcido, sim

Um doente com perturbações psíquicas deixou os seus 1,5 milhões de euros à Unicef. Na véspera do suicídio, pediu que inscrevessem no seu cendrário: “Más cabrón que bonito – Too damn to steal, too smart to work”. A irmã tentou anular o testamento, mas o facto de o falecido se ter rodeado de dois psiquiatras quando o assinou levou o tribunal a concluir que estava lúcido q.b.

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Miguel feraso Cabral

Antes de morrer decidiu doar toda a sua fortuna à Unicef a quem incumbiu de tratar do funeral e inscrever no recipiente reservado para as suas cinzas a frase “Más cabrón que bonito – Too damn to steal too smart to work”. A irmã alegou que a decisão foi motivada pela doença mental de que padecia, marcada por surtos psicóticos que o faziam acreditar em extraterrestres, e tentou anular o testamento. O Tribunal da Relação de Lisboa, porém, confirmou, em Junho passado, que o documento era válido por não se ter feito prova em tribunal de que o mesmo fora outorgado num período de paranóia.

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Antes de morrer decidiu doar toda a sua fortuna à Unicef a quem incumbiu de tratar do funeral e inscrever no recipiente reservado para as suas cinzas a frase “Más cabrón que bonito – Too damn to steal too smart to work”. A irmã alegou que a decisão foi motivada pela doença mental de que padecia, marcada por surtos psicóticos que o faziam acreditar em extraterrestres, e tentou anular o testamento. O Tribunal da Relação de Lisboa, porém, confirmou, em Junho passado, que o documento era válido por não se ter feito prova em tribunal de que o mesmo fora outorgado num período de paranóia.

Quando o doente se suicidou, em Junho de 2015, tinha 53 anos e um longo historial de doença mental. Na véspera da sua morte, tinha escrito um e-mail, programado para só chegar ao destinatário no dia seguinte, onde informava os responsáveis pela recolha de fundos da Unicef que lhes tinha deixado toda a sua herança, que incluía duas lojas, vários apartamentos e um prédio em Lisboa, num valor aproximado de 1,5 milhões de euros.

Impunha condições: a Unicef ficaria responsável pela organização do seu funeral – uma cremação em cerimónia não religiosa e sem velório – que devia ser simples, sóbrio e mantido em segredo, nomeadamente dos seus familiares mais próximos. Quanto às cinzas resultantes da cremação, as instruções eram também claras e pormenorizadas: deviam ser colocadas num cendrário metálico com acabamento em aço escovado e com o tal epitáfio que o tribunal viria a considerar provocatório, sim, mas não passível de ser descrito como o acto de um louco.

Alegando que nunca conhecera ao falecido vontades altruístas relativamente a nenhuma organização não governamental, a irmã que compunha, juntamente com os seus dois filhos, a única família do falecido, pediu ao tribunal que declarasse nulo tal testamento. E juntou à petição inicial vários relatórios médicos que o descreviam como sofrendo de esquizofrenia paranóide. Ao tribunal foram ainda apresentados comprovativos de que o doente fora internado compulsivamente por três vezes – duas na ala psiquiátrica do Hospital de Santa Maria e a terceira em Milão, onde teve um surto psicótico no aeroporto italiano, e no regresso a Portugal foi acompanhado pelo sobrinho que o foi buscar.

Mas, para conseguir ser declarada única e universal herdeira, a autora da acção tinha de provar que o seu irmão se encontrava incapaz de entender o sentido da sua determinação no momento em que fez o testamento. O tribunal começou por julgar a acção improcedente, mas, no recurso, a familiar argumentou que o juiz falhara no apuramento dos factos, nomeadamente por não ter dado como provado que o falecido adoptava amiúde comportamentos delirantes e tresloucados. Aliás, nos meses que antecederam a sua morte era visto a gesticular e esbracejar na rua. E tinha comportamentos violentos dirigidos sobretudo contra a família que acusava de o querer envenenar e roubar

Na versão da irmã, eram ela e os sobrinhos de F. que zelavam para que não falhasse a medicação e que geriam o património de maneira a que não lhe faltasse o dinheiro para a vida quotidiana. De resto, por ocasião da realização do testamento, estaria convencido que os habitantes do planeta Terra eram manipulados por entidades extraterrestres, nuns momentos, e que não passavam de uma simulação criada por computador, noutros. Num desses momentos de delírio psicótico, cerca de um mês antes da sua morte, comentara com um amigo com quem se foi encontrar na Costa da Caparica que mais de 50 carros o tinham perseguido quando atravessava a Ponte 25 de Abril.

Do lado da Unicef, os argumentos foram igualmente fortes: os inquilinos do falecido testemunharam que aquele “sempre realizou as obras necessárias e recebeu o valor das rendas”. E o psiquiatra que o acompanhava há 15 anos confirmou em tribunal que este “sofria de uma psicose com intervalos livres”, isto é, confirmou a doença do tipo esquizofrénico, mas diferente da esquizofrenia, porquanto existiam “períodos de lucidez”. E atestou que, na ida ao notário, estava “completamente vígil, atento e livre na sua vontade”.

Já depois de feito o testamento, escreveu ao psiquiatra que se dispusera a acompanhá-lo para lhe agradecer a presença e aproveitando para lhe sugerir o visionamento de vários vídeos no YouTube acerca da vida extraterrestre. Ainda assim, o tribunal de primeira instância e depois a Relação não deram como provado que o comportamento do falecido por ocasião da celebração do testamento suscitasse dúvidas quanto à sua lucidez e integridade de consciência. Uma amiga de infância confirmara que F. tinha episódios de “lucidez” e “vontade própria” e que se mostrava desconfiado em relação à família, num testemunho que reforçou a convicção dos juízes de que o testamento fora intencional “ainda que moralmente, face à família, tal não fosse o mais correcto”.

“A alegação de que o testador sofria de perturbações psíquicas não basta por si só, como não basta a alegação do suicídio posterior deste ou a sua (no mínimo original) descrição tumular, para se considerar viciada, inoperante a vontade manifestada”, ajuizaram os magistrados, para reforçarem que o suicídio “podendo ser descrito como uma afronta à vida humana, não é, no entanto, passível de ser descrito como um acto de um louco, de alguém consistentemente afectado nas suas capacidades psíquicas, incapaz de querer e entender”.

De resto, no entender os juízes, “até das últimas declarações transparece um humor –negro é certo – que não é de alguém que está incapacitado para actuar ou agir da forma como o fez”.

Logo, independentemente de o doente sofrer ou não de uma esquizofrenia paranóide ou de outra psicose com delírios, a irmã não conseguiu provar que F. atravessava um surto psicótico quando assinou o testamento. Até porque aquele tivera o cuidado e a lucidez de se fazer acompanhar por dois psiquiatras na sua ida ao notário, ou seja, estava capaz de prever e prevenir “eventuais reacções face ao teor do testamento”, o que mostra que era alguém “não só inteligente, como lúcido e esclarecido”.