Os Andrades ou Os Tripíadas lidos à moda do Porto

Já não é a primeira vez que João Carlos Brito põe num livro o linguajar das gentes do Porto (e de algum Norte). Esta terça-feira, apresenta mais um: Clássicos da Literatura à Moda do Porto.

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É o sétimo livro que o professor-bibliotecário João Carlos Brito dedica ao falar das gentes do Porto Nelson Garrido

Até parece impossível que sempre que João Carlos Brito se lança à cata de novas palavras no linguajar das gentes do Porto encontre novidades. Para ele, nascido e criado no Porto, portista e salgueirista, não é novo isto de mostrar que a língua portuguesa pode ter muitas variantes seja no Norte, no Centro — aqui faltam-lhes as Beiras, “um país dentro do próprio país” — ou no Sul, mergulhando ainda nas ilhas.

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Até parece impossível que sempre que João Carlos Brito se lança à cata de novas palavras no linguajar das gentes do Porto encontre novidades. Para ele, nascido e criado no Porto, portista e salgueirista, não é novo isto de mostrar que a língua portuguesa pode ter muitas variantes seja no Norte, no Centro — aqui faltam-lhes as Beiras, “um país dentro do próprio país” — ou no Sul, mergulhando ainda nas ilhas.

Mas é no Porto (e algum Norte) que está a principal matéria-prima das suas obras. Mostrou-o em Heróis à Moda do Porto (2010), em Lugares e Palavras do Porto (2014), no Dicionário de PORTOguês-Inglês (editado em 2015, em co-autoria com Ana Cruz e Cristina Vieira Caldas) e no Dicionário de Calão do Porto (2016). Esta terça-feira, às 21h30, no Café ”Piolho”, lança mais um onde há Os Maias e outros clássicos da literatura portuguesa escritos à moda do Porto.

Em Clássicos da Literatura à Moda do Porto reza assim a história: “E eis que, vindo de mil rambóias, se aproxima o Vendedor da Feira de Custóias. Nos pés umas alpercatas que lhe alindavam as belas patas. Cu das calças coçado de pano bem falseado e um crocodilo na camisola, sinal de quem não anda à gola, mas com etiqueta da Lacoste de Angola. Vidrinhos escuros da Carrera, ao estilo de acelera, e no pulso um Rolex a dar uma imagem pr’á frentex. Trazia uma mala onde nada era à pala. Bem pelo contrário: tudo para fazer a folha a qualquer otário. Apregoava telemóveis do Japão e relógios da Suíça. Também vendia roupa em primeira mão e até boa chouriça”. 

Vá alguém ler este texto e decerto terá de ir ao dicionário (já lá vamos), mas garantimos que aqui, assim de repente, até pode nem se reconhecer, está um excerto do Auto da Barca do Inferno, ou melhor, do Auto do Rabelo de Bila Noba de Gaia. Aqui, Os Maias são Os Andrades, Frei Luís de Sousa é Mano Pinto de Sousa, o Sermão de Santo António aos Peixes é Sermão de Padre Tone aos Camones da Ribeira e Os Lusíadas são Os Tripíadas.

Uma espécie de realidades (da ficção) alternativas, em que “os autores não perdem”, garante João Carlos Brito, que não quis desvirtuar a obra dos autores. O livro, que lhe levou dois anos a dar ao zingarelho, conjuga a “paixão” que tem “pelo Porto e pela forma própria como ali se fala, pela literatura e pelos clássicos”. Sendo um “confesso admirador”, cometeu a “ousadia” de reescrever os clássicos e de os fazer “vítimas de uma espécie de assassinato tripeiro”, “sem, contudo, tirar a estrutura essencial da obra”. 

As personagens mantêm-se, mas são retiradas dos seus ambientes, para serem estrategicamente colocadas em locais da “Embíqueta”. A linguagem, essa, é “muito, muito tripeira”, assim como as suas referências e críticas sociais, que aqui apenas os portuenses entenderão.

É certo que será difícil retratar um clássico como Os Maias, de 700 páginas, em apenas 20, “mas a estrutura é respeitada, as personagens, assim como os símbolos”, há-de repetir o autor. 

Neste livro, trocam-se ainda os “vv” pelos “bb” à descarada, e recorre-se aos trejeitos portuenses em abundância. E até Jorge Nuno Pinto da Costa passa de presidente do Futebol Clube do Porto a Santo Papa.

O Padre António Vieira passou a “Padre Tone” enquanto se preparava para “botar faladura” de um sermão que “ia ser tótil, inflamado de paixão e de portismo”. Mas, “c’os diabos”, onde estavam os fiéis? “Arregalou os faróis, esfregou a ramela, mas as bistinhas não mudavam”. E até Vasco da Guna optou por um caminho alternativo ao sair de Vila Nova de Gaia para dar novos portos ao Porto. Rumou até à Ericeira, com o alto patrocínio da Pichelaria Santos, porque era lá que estavam as melhores pranchas de surf. 

Brincadeiras à parte, quer-se que seja um livro de “partir a moca a rir”, mas que, ao mesmo tempo, motive para a leitura de grandes autores os mais jovens, ao gosto da brincadeira, assume o autor, que é também responsável pelas bibliotecas do Agrupamento de Escolas de Gondomar. 

No final das cinco histórias recontadas, dedicado a quem meia palavra não basta, há um Dicionário Clássico Tripeiro, que reúne as palavras e expressões utilizadas em toda a prosa. São cerca de 1000 entradas e destas entre 100 a 150 não estão nos outros livros. É mais uma amostra de quão carregado de humor está o falar das gentes do Grande Porto e de algum Norte. A João Carlos Brito, fica-lhe a certeza de que haverá ainda por aí muito material para futuras obras, porque este linguajar será “sempre, sempre, sempre inesgotável”.