Tânger, a cidade para quem queria viver

O romance Deixa a Chuva Cair foi publicado pela primeira vez em 1952 e agora recordado pela Quetzal.

Foto
Tânger Hérnan Piñera

Dezembro de 1949. Paul Bowles embarcara em Antuérpia, num cargueiro polaco destinado a Colombo. Quando a embarcação se aproximou de Tânger, "um nevoeiro fino pousou sobre a água e só se via o brilho das luzes da cidade reflectido no céu". Foi o que bastou para mudar o rumo dos acontecimentos e para o autor nova-iorquino se sentir impelido a escrever um livro sobre a cidade com estatuto internacional, a cidade que desde 24 de Junho de 1925 — a propósito de um acordo assinado pela Bélgica, Espanha, Estados Unidos, França, Países Baixos, Portugal, Reino Unido e a União Soviética que estabelecia a administração conjunta desta cidade — passara a ser uma zona livre de impostos. "Foi então que senti um desejo irracional e poderoso de estar em Tânger", relata Paul Bowles no prefácio de "Deixa a Chuva Cair" (Quetzal), romance publicado pela primeira vez em 1952, no exacto momento dos motins que anunciavam o fim da Zona Internacional de Marrocos. "A cidade, a que estas páginas prestam homenagem, deixou há muito de existir e os acontecimentos nelas narrados seriam inconcebíveis actualmente. Como uma fotografia, esta história é um documento relativo a um determinado lugar, num determinado momento no tempo, iluminado pela sua própria luz."

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Dezembro de 1949. Paul Bowles embarcara em Antuérpia, num cargueiro polaco destinado a Colombo. Quando a embarcação se aproximou de Tânger, "um nevoeiro fino pousou sobre a água e só se via o brilho das luzes da cidade reflectido no céu". Foi o que bastou para mudar o rumo dos acontecimentos e para o autor nova-iorquino se sentir impelido a escrever um livro sobre a cidade com estatuto internacional, a cidade que desde 24 de Junho de 1925 — a propósito de um acordo assinado pela Bélgica, Espanha, Estados Unidos, França, Países Baixos, Portugal, Reino Unido e a União Soviética que estabelecia a administração conjunta desta cidade — passara a ser uma zona livre de impostos. "Foi então que senti um desejo irracional e poderoso de estar em Tânger", relata Paul Bowles no prefácio de "Deixa a Chuva Cair" (Quetzal), romance publicado pela primeira vez em 1952, no exacto momento dos motins que anunciavam o fim da Zona Internacional de Marrocos. "A cidade, a que estas páginas prestam homenagem, deixou há muito de existir e os acontecimentos nelas narrados seriam inconcebíveis actualmente. Como uma fotografia, esta história é um documento relativo a um determinado lugar, num determinado momento no tempo, iluminado pela sua própria luz."

Tânger de Bowles é um caldeirão de muitos elementos não convencionais e que será percorrido por Nelson Dyar, um americano moderadamente jovem que ficou preso por dez anos na pele de um bancário e que ainda vive em casa com o pai e a mãe em estado de paralisia progressiva. Ainda não leu nada, ainda não amou nada, ainda não se comprometeu com nada. Foi levado para Tânger depois da Segunda Guerra Mundial por um velho amigo, Wilcox, a quem o próprio havia escrito por uma necessidade súbita e desesperada de dar vida e significado ao seu ser. Em Tânger tenta satisfazer os seus instintos explorando o lado mais sórdido da cidade. "O herói é um zé-ninguém, uma 'vítima', como ele próprio se descreve, cuja personalidade, definida apenas em termos da situação, só provoca simpatia na medida em que é vitimizada. É a única personagem totalmente inventada", conta Paul Bowles, que para todas as outras usou como modelo os verdadeiros habitantes de Tânger. "A única personagem cujo modelo continua aqui é Richard Holland, e isto é porque eu continuo aqui e ele é uma caricatura de mim próprio." Bowles voltou a Tânger no final de 1950, num "Inverno memoravelmente tempestuoso", e no Outono de 1951.

Transposto para um meio totalmente estranho, Dyar vagueia entre as duas culturas – a árabe e a ocidental –, sem compreender nenhuma delas. Retirado do ambiente ordenado em que existira até então, não consegue interpretar as reacções daqueles com quem se cruza: Hadija, a pequena prostituta, a terrível Eunice Goode, Thami, o contrabandista árabe que faz a ponte entre os salões do palácio dos Beidaoui e os bares da casbá, Daisy de Valverde, Wilcox, com os seus negócios escuros, Madame Jouvenon e a espionagem, os berberes e o povo das montanhas, a população dos bairros indígenas e os cambistas judeus. A chuva cai incessante, transformando em rios as ruelas da casbá e marcando as alterações do estado de espírito de Dyar. Até ao abismo inevitável.

"Deixa a Chuva Cair", escreveu em 1952 Robert Gorham Davis para o The New York Times, "revela o talento de Bowles para lidar com o macabro, o onírico, o cruel e o perverso de uma forma genuinamente imaginativa." O romance presta homenagem a Tânger (onde Paul Bowles faleceu a 18 de Novembro de 1999) e a Marrocos, país onde o autor viveu grande parte da sua vida. O título vai buscar inspiração a Macbeth, de Shakespeare, explica o autor: "Desde os meus oito ou nove anos que me fascina aquele breve trecho de Macbeth em que Banquo sai do castelo com o filho e comenta, de passagem, para os homens no exterior, que a chuva vem aí. Obtém, como resposta, o faiscar de uma lâmina e a admirável frase de quatro palavras, sucinta e brutal: 'Deixa a chuva cair.'"