Três quarentões numa reunião de condomínio ou uma geração deitada no divã

O público foi chamado a participar na criação de uma peça de teatro que vai à cena (num prédio) em Setembro. Imóvel é o retrato de uma geração e um espelho incómodo: quem somos nós neste cenário?

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É uma sala com humidade, cheiros, tinta a descolar-se das paredes, fissuras. À medida que a peça foi ganhando corpo e sentido naquele palco improvisado, pareceu ganhar mais e mais fissuras, como se a qualquer momento pudesse desabar e fazer-se em pó. Sensação condicionada, talvez: “Se calhar é mesmo preciso ir à ruína”, ouve-se, “até para do caos se criar algo”. A reflexão, a dois tempos entre o sonoplasta Rodrigo Malvar e o director Hugo Cruz, vem a propósito da peça Imóvel, que anda a bailar na cabeça deles há perto de dois anos e se desenha no terreno há uns 15 dias, num prédio de três andares na Baixa do Porto. Uma peça para desinquietar e pôr holofotes nas tormentas, nos impasses e urgências da geração dos 40 anos (não coincidentemente a deles). Numa reunião de condomínio que é, afinal, um divã dos nossos dias e da vida.

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É uma sala com humidade, cheiros, tinta a descolar-se das paredes, fissuras. À medida que a peça foi ganhando corpo e sentido naquele palco improvisado, pareceu ganhar mais e mais fissuras, como se a qualquer momento pudesse desabar e fazer-se em pó. Sensação condicionada, talvez: “Se calhar é mesmo preciso ir à ruína”, ouve-se, “até para do caos se criar algo”. A reflexão, a dois tempos entre o sonoplasta Rodrigo Malvar e o director Hugo Cruz, vem a propósito da peça Imóvel, que anda a bailar na cabeça deles há perto de dois anos e se desenha no terreno há uns 15 dias, num prédio de três andares na Baixa do Porto. Uma peça para desinquietar e pôr holofotes nas tormentas, nos impasses e urgências da geração dos 40 anos (não coincidentemente a deles). Numa reunião de condomínio que é, afinal, um divã dos nossos dias e da vida.

O texto — uma co-produção Nómada, Art & Public Space e Teatro Nacional de São João, que estará em cena de 19 a 23 de Setembro, com bilheteira no Teatro Carlos Alberto e palco real num prédio próximo desse teatro — veio do olhar de uma outra geração. À porta dos 61 anos, a poetisa, cineasta, dramaturga e letrista Regina Guimarães aceitou o desafio de Hugo Cruz e de uma equipa de actores e técnicos quarentões (ou quase) em processo de auto-reflexão. Regina não teve sequer de sair de casa para traçar o esboço dessa narrativa, ou não fosse ela mãe de três quase quarentões, professora dessa geração feita gente em liberdade. “Não foi preciso investigar porque ouço falar dela todos os dias”, disse ao PÚBLICO minutos antes de o Mira Artes Performativas se converter em cenário de um verdadeiro ensaio aberto, onde duas dezenas de pessoas aceitaram o desafio de assistir a esta peça em construção e se tornaram uma espécie de co-autores com os seus comentários e sugestões.

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Faz-se silêncio na sala cor de terra do Mira. Há três baldes estacionados no chão e apenas o som de água a cair em pingas grossas interrompe a quietude. Dali a alguns minutos aquele cenário será perceptível: um telhado com infiltrações é tema da discórdia numa reunião de condomínio que se percebe ser repetida e eternamente inconclusiva. Três vizinhos em debate: uma investigadora científica adepta da meritocracia, uma esotérica ainda crente na felicidade, um hipster cheio de máscaras sociais, hiperligado à tecnologia e desligado dele mesmo. Fala-se de especulação imobiliária, do drama de arrendar, de redes sociais, conflitos de quem partilha a mesma porta de entrada, até marquises construídas ilegalmente. De repente, um espelho parece erguer-se para que o público se veja em palco: que personagem seremos nós naquela cena? Quantas vezes é que a reunião de condomínio lá do prédio não resvalou para o despejar das fúrias e dores quotidianas? Quantos administradores vimos fazer a gestão de um prédio como se governassem sentimentos e dominassem vidas alheias?

“É o condomínio como uma metáfora do funcionamento da sociedade”, começa Hugo Cruz, 40 anos, admitindo que a questão da habitação também reproduzida na peça não se inspirou na crítica ao Porto de hoje, onde o tema se fez capa de jornal — ainda que essa leitura seja agora inevitável. Condomínio como alegoria da cidade, pois. E para lá disso até: “É quase uma célula de um organismo mais amplo que se chama democracia e que está em profunda crise. Estamos à procura de resolver este impasse: depois da desilusão com os socialismos, depois da ilusão com os capitalismos, que também já se percebeu que não nos servem, estamos à procura de outros ‘ismos’.”

Esta criação levou Hugo Cruz e a sua equipa a um caminho difícil: “É muito fácil apontar para a frente, mas esquecemo-nos de que temos três dedos a apontar para nós”, observa Rodrigo Malvar, 41 anos, com a mão direita a gestualizar. Cientes da “pouca dramaturgia” existente para retratar a geração dos 40 anos e com vontade de agarrar essa ideia — ainda “mais desafiante” do que o habitual, por ser um olhar para as entranhas deles mesmos e não dos outros —, chegaram a uma proposta inquietante. Pode até dar-se o caso de uma ou outra risada se ouvir na plateia a dada altura, mas Imóvel não aceita confundir-se com comédia: o assunto é coisa séria.

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A geração ali representada, aponta Regina Guimarães, foi “a última a ter a ilusão de que se estudasse teria tudo”. E esse sonho a meter água por todos os lados é muitas vezes origem de uma “grande amargura” com esta “sociedade da promessa que lhes tirou o tapete”. Já sentados numa semi-roda a dialogar com o público que esteve no Mira Artes Performativas, os actores Susana Madeira, Margarida Fernandes, Vítor Alves da Silva (os três vizinhos) e Sérgio Anjos (o elemento externo que a dada altura da peça abala certezas) acenam num sinal de pacto silencioso com a autora do texto, a reconhecerem-se naquela leitura.

Ali estão, crescidos em liberdade, mas “condicionados por uma competição canina”, numa “pressão constante” e numa batalha com “regras que ditaram seres inexpugnavelmente solitários”. O discurso é, de alguma forma, “uma maneira de não terem de falar”, apanhados na curva do mundo digital e da meritocracia, onde “ou se faz carreira ou se é condenado a uma vida de precariado indigna”, habituados que estão a “temer o olhar dos outros” e “obrigados a serem mais individualistas”. É um retrato cheio de dores o abreviado por Regina Guimarães — estruturalmente diferente do que faria da sua geração, progenitora desta.

“Tudo era bastante mais óbvio. Aqueles que de alguma forma tinham acesso aos estudos tinham a sua vida mais ou menos resolvida”, reforça, para logo de seguida retomar: “A nossa geração perspectivava o futuro com uma grande dose de ilusão e quimera, mas achava que ia assistir a mudanças fundamentais e ao nascimento de um mundo melhor.”

Nas escolas que visita, ela escuta, porém, algo que nunca imaginou: crianças e jovens a desfiar preocupações sobre o aquecimento global, a poluição ou o desemprego. Vem atrelada essa consciência de um possível fim da vida na Terra e da ideia de que só ao sprint se pode ser alguém. Ideias e dilemas que são retratos de seres em construção, agora quarentões, em enorme conflito. Com os pés em duas margens que parecem afastar-se cada vez mais. Onde encontrarão eles chão quando a distância precipitar o fim desse malabarismo forçado?