Immaterial girl

SOPHIE desconstrói e manipula a música pop para a reenquadrar num universo ciborgue e queer.

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Comecemos pelo fim, Whole New World/ Pretend World. Se nos primeiros minutos parece que vem aí canção de electrónica maximal que levou com ácido em cima, pouco depois já estamos a ser sugados para dentro de uma centrifugadora de pop cacofónica onde parece acontecer tudo: choques eléctricos tonitruantes, vermes andróides a definhar, Einstürzende Neubauten e Autechre em esteróides no meio de cheerleaders e espectros de vozes soul, batidas pugilistas e gangrenosas, trap processado até à medula, metais a embater e a rachar; tudo a crashar até uma luz furar e emergir, qual big bang.

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Comecemos pelo fim, Whole New World/ Pretend World. Se nos primeiros minutos parece que vem aí canção de electrónica maximal que levou com ácido em cima, pouco depois já estamos a ser sugados para dentro de uma centrifugadora de pop cacofónica onde parece acontecer tudo: choques eléctricos tonitruantes, vermes andróides a definhar, Einstürzende Neubauten e Autechre em esteróides no meio de cheerleaders e espectros de vozes soul, batidas pugilistas e gangrenosas, trap processado até à medula, metais a embater e a rachar; tudo a crashar até uma luz furar e emergir, qual big bang.

A canção de nove minutos que fecha Oil Of Every Pearl’s Un-Insides, o primeiro álbum de SOPHIE, está cheia de curvas, convulsões, pés à beira do abismo – e tudo isto é pop, dificilmente catalogável, altamente desorientador, muitas vezes sufocante e potencialmente irritante, mas também fascinante. SOPHIE é tudo isso e mais alguma coisa que nos está a falhar, acima de tudo é uma compositora e arquitecta sonora peculiar que desconstrói e esventra a cultura e a música pop para as reenquadrar num cosmos ciborgue e trans-humanista. Começou em 2013 ao lado do colectivo e editora PC Music, estetas pós-modernos da pop electrónica da era da internet e do ultracapitalismo, quando ainda era uma figura misteriosa – não a impediu de vender uma das suas músicas, Lemonade, para um anúncio da McDonald’s e de ter sido agenciada pela Roc Nation de Jay-Z.

Para SOPHIE, as fronteiras que delimitam a cultura de massas e os circuitos underground são bolorentas, bem como as elucubrações sobre o que é ou não é a autenticidade. Na sua música, o falso, o sintético, o manipulado, o fingimento são terrenos privilegiados de construção e desconstrução. De mutação, de procura de novas formas de ser e existir. É sabedoria queer, em que o “autêntico” é aquilo que quisermos que seja, à nossa maneira e fora da normatividade essencialista e naturalista: “My face is the front of shop / My face is the real shop front / My shop is the face I front / I’m real when I shop my face”, diz-se em Faceshopping, pedaço de híper-realidade movida a electrónica distorcida, carbonizada e peganhenta sobre a expressão da(s) identidade(s). Há neste disco uma celebração da fluidez que ultrapassa a biologia do sexo e do género atribuídos à nascença. “I could be anything I want/ Immaterial boys, immaterial girls/ Anyhow, anywhere, any place, anyone that I want”, ouve-se em Immaterial, onde vestígios de Material Girl de Madonna – para quem SOPHIE já produziu canções, tal como para Vince Staples, Charli XCX ou Le1f – são filtrados num caldeirão insano de electrónica sacarina e dopada entre moléculas de K-pop e J-pop, chipmunk e outros barroquismos da internet.

Oil Of Every Pearl’s Un-Insides tem quebras, perdas de foco – Infatuation, Not Okay e o drone pendular e fantasmagórico de Pretending não faziam falta aqui –, mas volta a subir em canções como Is It Cold In The Water?, Underworld meets Kate Bush em voo de beleza iniciática, ou Ponyboy, espécie de encontro de Britney Spears com o BDSM, latex a esticar e suor metalizado num cruzamento entre r&b, trap e gabber. O arranque do disco faz-se noutro tom, muito anos 80 mas também muito 2018, com It’s Okay To Cry, balada violácea e aeriforme. Uma passerelle sintética para vulnerabilidade real, seja lá o que a realidade e a autenticidade forem.