Peritos alertam para “conflito de interesses” na medicina física e de reabilitação

Só existem dois médicos fisiatras nos agrupamentos de centros de saúde, revela relatório de grupo de trabalho. Pagamento a convencionados deve deixar de ser feito por acto e assentar no desempenho

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Convenções na MFR representam perto de um quinto do total da despesa com este tipo de acordos RUI GAUDÊNCIO

É urgente rever o modelo actual das convenções na medicina física e de reabilitação (MFR), defende um grupo de especialistas que analisou a prestação de cuidados nesta área e que alerta para a existência de um “conflito de interesses”, uma vez que não existe uma separação clara dos “papéis de referenciador, prescritor e prestador”.

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É urgente rever o modelo actual das convenções na medicina física e de reabilitação (MFR), defende um grupo de especialistas que analisou a prestação de cuidados nesta área e que alerta para a existência de um “conflito de interesses”, uma vez que não existe uma separação clara dos “papéis de referenciador, prescritor e prestador”.

“O modelo de convenções [com o Estado] de medicina física e de reabilitação é o único em que o prescritor de cuidados é aquele que presta esses mesmos cuidados, determinando assim a quantia a receber por parte do SNS [Serviço Nacional de Saúde], o que constitui um manifesto conflito de interesses que urge resolver”, consideram os membros do grupo de trabalho que analisou os cuidados de saúde na MFT em ambulatório num relatório que está em consulta pública no site da Administração Central do Sistema de Saúde até 20 de Julho.

Sublinhando que é preciso criar instrumentos que permitam “uma referenciação adequada” e informação de retorno sobre os cuidados prestados, os autores do relatório propõem um novo modelo de financiamento e pagamento não por acto, como acontece actualmente, mas por desempenho, tendo em conta a complexidade dos doentes e os ganhos em saúde. Preconizam ainda a criação de sistemas de informação integrados e de classificação de doentes baseado em escalas de medição validadas.

Com o Serviço Nacional de Saúde (SNS) a mostrar-se incapaz, ao longo dos anos, de dar uma resposta completa aos cidadãos, tornou-se necessário recorrer na maior parte dos casos a entidades do sector social e privado para suprir as limitações nesta área. A MFR é, assim, hoje a terceira área com convenções com o Estado que maior encargos financeiros representa - perto de um quinto do total da despesa com este tipo de acordos.

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Constituído em Setembro de 2016 para redesenhar a estrutura da ofertas e apresentar propostas para “uma maior internalização” da MFR nas unidades públicas, este grupo de trabalho analisou dados de 2016 e anos anteriores e revela que a despesa nesse ano rondou os 75 milhões de euros, tendo aumentado 9% face a 2015. Quanto à despesa das Administrações Regionais de Saúde (ARS) em meios complementares de diagnóstico e terapêutica, três dezenas de agrupamentos de centros de saúde (ACES) concentravam mais de 80% dos gastos e eram quase todos da região Norte.

Já em 2017, os gastos com o sector convencionado nesta área ascenderam a 97 milhões de euros, segundo outro documento oficial, o relatório do acesso do SNS esta semana enviado ao Parlamento. Só as análises clínicas (171 milhões de euros) e a radiologia (104,5 milhões) representaram uma factura maior para o Estado. 

Meses antes, em Julho de 2016, o Ministério da Saúde tinha publicado uma portaria que visava garantir a “internalização” destes cuidados e criar um sistema de classificação de doentes para a referenciação, pelos médicos de família, para o sector convencionado, mas esta acabou por ser suspensa. Nessa altura, o colégio da especialidade de MFR da Ordem dos Médicos avisou que o conceito de internalização obriga a definir uma carteira de serviços, ou seja, “que tipo de intervenção é possível dentro” de cada ACES. E considerou que “não é desejável que, de forma repentina, se interrompam modelos de acessibilidade” implantados há décadas, porque dessa atitude “resultará uma diminuição drástica e repentina” no acesso. Um novo modelo só poderá ser introduzido de “forma progressiva”.

“Falta de equidade no acesso”

O certo é que, sem um “planeamento estratégico” da oferta, ao longo do tempo multiplicaram-se pelo país respostas de MFR “sobrepostas e pouco efectivas”, recorda o grupo de trabalho nomeado pela tutela. Também não tem havido uma estratégia nacional de planeamento dos recursos humanos, o que tem provocado “dispersão e indisponibilidade”, e falta igualmente um modelo de financiamento que “premeie o desempenho e os resultados alcançados”, observa.

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Devido a estas “limitações históricas”, há hoje “falta de equidade no acesso”, com a coeexistência de diferentes modelos de resposta - em centros especializados em reabilitação, em internamento e ambulatório hospitalar, em entidades convencionadas, em alguns ACES (agrupamentos de centros de saúde) e na rede nacional de cuidados continuados integrados, elenca.

Em todo o país, a distribuição dos recursos, nomeadamente os recursos humanos, é muito díspar. Por exemplo, há apenas dois médicos fisiatras nos ACES, um no de Gaia e outro no do Porto Oriental. Nos outros grupos profissionais, a distribuição também não é uniforme: existem 338 enfermeiros de reabilitação, 157 fisioterapeutas, 34 terapeutas ocupacionais e 27 terapeutas da fala. Mas a ARS do Norte tem 180 enfermeiros de reabilitação, quase o dobro dos da ARS de Lisboa e Vale do Tejo (LVT). E o Alentejo dispõe de nove terapeutas da fala, enquanto o Norte e LVT têm apenas cinco, cada uma.

Os peritos propõem a criação de equipas multiprofissionais de saúde pública e de reabilitação nos antigos centros de saúde e a mudança da forma de encaminhamento (referenciação) dos cidadãos para as diversas tipologias da rede de cuidados em ambulatório (sem internamento). E frisam que o processo de referenciação terá que se basear na avaliação clínica feita pelo médico de família e no grau de funcionalidade (incapacidades) das pessoas.

O novo modelo de referenciação implicará que sejam encaminhados para estas equipas os doentes cujo grau de funcionalidade oscile entre 0% e 49%, como é o caso dos doentes crónicos com patologias de baixa complexidade, pouco dependentes. Quando o grau de funcionalidade dos doentes for muito reduzido ou ausente (50% a 100%), estes devem ser referenciados para serviços de MFR dos hospitais e centros regionais de saúde física e reabilitação.  Na rede de cuidados continuados mantêm-se os critérios actuais.

Frisando que o relatório não é apenas o princípio para o debate, recomendam que as propostas sejam testadas em experiências-piloto até ao final deste ano na região Norte, para depois se definir o modelo definitivo a concretizar até 2020.