O PS para além da "geringonça"

O PS deve definir como prioridade eleitoral a recuperação do estatuto de partido com maior representação no Parlamento.

O período que antecedeu a realização do Congresso do PS, que decorre este fim-de-semana, ficou marcado pela publicação de vários textos de carácter doutrinário subscritos por relevantes figuras do partido. Desse debate, que tem desde logo a virtude de revelar o pluralismo de ideias prevalecente no seio do PS, é possível extrair algumas inferências relevantes. A primeira delas é a de que num partido dotado de uma forte amplitude política podem e devem conviver perspectivas programáticas e estratégicas substancialmente diferenciadas; a segunda é a de que no próprio interior do núcleo mais denso dos defensores de uma solução governativa com sustentação parlamentar à esquerda subsistem assinaláveis divergências que foram, de resto, clara e declaradamente exibidas; a terceira, porventura a mais relevante, é a de que não existe uma coincidência absoluta entre a linha de fractura estratégica e a linha de fractura doutrinária. É tendo em conta estas observações que poderemos lançar um olhar lúcido sobre o futuro do PS e da natureza específica da sua intervenção no debate democrático nacional.

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O período que antecedeu a realização do Congresso do PS, que decorre este fim-de-semana, ficou marcado pela publicação de vários textos de carácter doutrinário subscritos por relevantes figuras do partido. Desse debate, que tem desde logo a virtude de revelar o pluralismo de ideias prevalecente no seio do PS, é possível extrair algumas inferências relevantes. A primeira delas é a de que num partido dotado de uma forte amplitude política podem e devem conviver perspectivas programáticas e estratégicas substancialmente diferenciadas; a segunda é a de que no próprio interior do núcleo mais denso dos defensores de uma solução governativa com sustentação parlamentar à esquerda subsistem assinaláveis divergências que foram, de resto, clara e declaradamente exibidas; a terceira, porventura a mais relevante, é a de que não existe uma coincidência absoluta entre a linha de fractura estratégica e a linha de fractura doutrinária. É tendo em conta estas observações que poderemos lançar um olhar lúcido sobre o futuro do PS e da natureza específica da sua intervenção no debate democrático nacional.

Há dois anos e meio atrás pronunciei-me claramente contra a consumação do entendimento político conducente à viabilização de um Governo do PS com apoio parlamentar do PCP, do Bloco de Esquerda e dos Verdes. Explicitei então as razões de tal posição. Continuo a considerá-las válidas remetendo agora para o domínio do juízo futuro a avaliação dos méritos e insuficiências da solução consagrada. Reconheço, no entanto, em abono da verdade, que nos aspectos fundamentais da governação a influência das formações políticas situadas à esquerda do PS foi pouco significativa e, nalguns casos, até mesmo nula. Esse é, a meu ver, e tendo em conta as preocupações por mim próprio enunciadas, um dado positivo que fica a crédito da inegável capacidade de liderança exibida pelo primeiro-ministro. Contudo, esse sucesso pessoal de António Costa revela, por mais paradoxal que isso possa parecer, todos os limites e insuficiências do artefacto político que se convencionou designar por "geringonça". Tal artefacto, originado num contexto historicamente irrepetível, assenta em dois pressupostos insusceptíveis de amplo prolongamento temporal: o da anestesia da extrema-esquerda e o da manutenção de um quadro internacional favorável à adopção de medidas relativamente populares no âmbito económico-social. A volatilidade da "geringonça" decorre da natureza insanável das profundas divergências doutrinárias e políticas que separam o PS dos seus conjunturais parceiros à esquerda e da evidente impossibilidade de continuar a camuflar essas contradições pela via da adopção de políticas de curto prazo capazes de atender às exigências imediatas de algumas clientelas eleitorais.

Não terá sido por acaso que nas últimas semanas assistimos a um confronto público particularmente interessante entre membros do Governo e da própria Direcção Nacional do Partido Socialista. Augusto Santos Silva, por um lado, preconizou a opção por uma via radicalmente europeísta e moderada; Pedro Nuno Santos, por outro lado, advogou um reforço significativo da intervenção estatal na economia e sustentou mesmo a tese de que os parceiros da extrema-esquerda contribuíram para melhorar substancialmente a qualidade da governação socialista. Este confronto revela um aspecto essencial acerca do grau de adesão de relevantes membros do Executivo socialista à actual solução de maioria parlamentar: uns aceitam-na por razões conjunturais, outros reconhecem-se nela por clara convicção.

Nas presentes circunstâncias históricas o Partido Socialista deveria, na minha opinião, tornar claros os seus propósitos programáticos e estratégicos perante os portugueses. No plano programático pouco haverá a acrescentar ao documento de excepcional qualidade que submetemos à aprovação do país nas últimas eleições legislativas. Estava lá tudo: a opção pelo respeito integral dos compromissos europeus; a vontade de prossecução de uma política orçamental rigorosa tendo em consideração o elevado nível de endividamento do Estado, das empresas e das famílias; a adopção de medidas inovadoras no âmbito da legislação laboral de modo a incrementar a criação de emprego estável sem prejuízo da competitividade económica; o recurso a novas políticas de combate à pobreza como aquela que era consubstanciada na figura do complemento salarial; a utilização de instrumentos conducentes à promoção de um maior investimento privado. Esse programa estava igualmente empenhado em garantir um permanente reformismo gradual no Estado Social de modo a proporcionar ganhos significativos quer na sua viabilidade, quer na sua operacionalidade. Tal representava, e a meu ver continua a representar, uma ousada, imaginativa e devidamente ponderada via de afirmação de uma social-democracia atenta às questões do nosso tempo. Por isso mesmo creio que é por este caminho que o PS deve prosseguir nos planos doutrinário e programático.

De tal opção deve resultar, a meu ver, a adopção uma linha estratégica que conflitua em absoluto com a ideia de renovação da famigerada "geringonça". O PS deve definir como prioridade eleitoral a recuperação do estatuto de partido com maior representação no Parlamento. Essa é uma condição imprescindível para aumentar a sua autonomia politica libertando-se de qualquer tipo de aprisionamento e disponibilizando-se para entendimentos pontuais, a partir do exercício da governação, com todas as demais forças políticas dotadas de expressão parlamentar. Em suma, temos de readquirir uma verdadeira centralidade na vida política nacional a partir de um discurso que afirme sem qualquer tipo de ambiguidades as opções de fundo que identificam o nosso percurso histórico: a vocação europeísta, a adesão ao modelo da economia social de mercado, a promoção de um projecto de centro-esquerda empenhado em conciliar o valor da autonomia individual com o princípio da igualdade que constitui a base ontológica de qualquer sociedade democrática.