Vem aí a primeira casa de emergência para vítimas de violência doméstica LGBTI

Estrutura, criada com recurso a fundos europeus, terá lugar para sete pessoas e deverá começar a funcionar no dia 1 de Junho. Primeiro plano nacional prevê formação de elementos da PSP e da GNR.

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Paula Allen é a vice-presidente da Associação do Plano I Nelson Garrido

É o primeiro centro de acolhimento de emergência para vítimas de violência doméstica LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transgénero e intersexo) de todo o país. Esta sexta-feira à tarde, a Câmara de Matosinhos vai entregar à Associação Plano I a chave daquela que haverá de se chamar Casa Arco-íris.

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É o primeiro centro de acolhimento de emergência para vítimas de violência doméstica LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transgénero e intersexo) de todo o país. Esta sexta-feira à tarde, a Câmara de Matosinhos vai entregar à Associação Plano I a chave daquela que haverá de se chamar Casa Arco-íris.

Paula Allen, que é vice-presidente da Associação Plano I e presidente do Conselho Consultivo LGBTI, há-de ser directora técnica da Casa Arco-íris. Detectou a necessidade ao coordenar o centro de respostas, que abriu no início de 2017 em Matosinhos, e a unidade móvel, que começou a circular pelo Norte e Centro do país em Abril de 2018. Refere três casos concretos como motores.

Primeiro caso: um rapaz trans, vítima de abuso e rejeição familiar, ficou sem abrigo. Já mudara o nome próprio e a menção ao sexo nos documentos, já iniciara terapia hormonal, mas estava à espera das cirurgias de redesignação de sexo. Os pais, separados, concordavam num aspecto: se insistisse em ser um rapaz, a porta da rua seria serventia da casa.

Resgatado por uma organização, o rapaz foi posto num quarto com um homem “consumidor de substâncias psicoactivas, extremamente agressivo”. Ao perceber que ele tinha seios, o outro enfureceu-se. Agrediu-o de forma violenta.

Quando o caso lhe chegou às mãos, Paula Allen desdobrou-se em contactos telefónicos. “Chocou-me a dificuldade em encontrar um espaço à medida”, revela. “Toda a gente perguntava: ‘Homem ou mulher?’ Homem. ‘Temos uma camarata de homens.’ Camarata não pode ser. ‘Porquê?’ Por questões corporais, necessita de um espaço privado. ‘Mas tem alguma doença contagiosa?’”

Segundo caso: uma mulher, advogada, de nacionalidade brasileira, escapou à violência da mulher, empresária, de nacionalidade portuguesa. Conheceram-se no Brasil. Apaixonaram-se. Namoraram à distância até que a esta foi diagnosticado um cancro. Como o tratamento “era estupidamente caro, difícil de arranjar”, decidiram casar-se e fazer vida comum em Portugal. Primeiro, a violência era só psicológica. “Queres ir embora, vais. Não podes ficar aqui, vais para o teu país. Deixas de ter tratamento para o cancro.” Depois, tornou-se física.

“Ela fechava-se no quarto”, conta Paula Allen. Foi numa dessas vezes que telefonou para a linha de atendimento da Associação Plano I (966090117). “Eu não consigo mais. Ela vai abrir a porta. Ela vai-me bater”, dizia, tomada pelo medo. Foi acolhida numa estrutura para vítimas de violência doméstica, mas era olhada de lado pelas outras mulheres por ser lésbica.

Terceiro caso: duas raparigas, agredidas pelas famílias por serem lésbicas, fugiram de casa e dormiram três noites na rua até serem encaminhadas para o Centro Gis pela Saber Compreender, associação que dá apoio a pessoas em situação de sem abrigo. Aparecem no gabinete, situado nas antigas instalações da Câmara de Matosinhos, na rua Brito Capelo, já depois das 17h. Estavam sujas, cansadas, “muito irritadas com a vida uma e outra.”

“Não as podia deixar na rua”

Na linha de emergência social (144), Paula Allen não encontrou resposta. Já conheciam a história. Aquelas raparigas já antes tinham fugido e tornado a casa. Era um daqueles dias escuros, frios, chuvosos. “Não as podia deixar na rua.” Ligou à presidente da Associação Plano I, Sofia Neves. Que haveria de fazer? Decidiram pagar-lhes uma noite numa pensão. Sempre poderiam tomar um banho e dormir. No dia seguinte, multiplicaram-se os contactos infrutíferos. “Foi uma luta inglória. As miúdas tiveram de voltar para casa do pai e da mãe. Mas ficaram seis dias e seis noites na rua e apareciam aqui todas as manhãs.”

Não são casos únicos. Em 2017, acompanharam 123 pessoas, 20 das quais vítimas de violência doméstica. Neste momento, acompanham 199 pessoas.

Em Agosto, a associação apresentou uma candidatura ao Programa Operacional Inclusão Social e Emprego para criar um centro de acolhimento de emergência para vítimas de violência doméstica. Obteve a aprovação no final do ano. E esta sexta-feira a secretária de Estado da Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro, presidirá à cerimónia de entrega das chaves.

O apartamento é propriedade da autarquia. O protocolo de cedência será assinado pela presidente da Câmara de Matosinhos, Luísa Salgueiro, e por Sofia Neves. Prevê-se que a estrutura comece a funcionar no próximo dia 1 de Junho.

Haverá sete camas distribuídas por três quartos. E uma sala de convívio, uma cozinha, um gabinete técnico. “Vamos tentar salvaguardar o que a pessoa considera o mais adequado”, esclarece Paula Allen. "Se é uma mulher que só quer partilhar quarto com uma mulher, se é um homem que só quer partilhar quarto com outro homem, se é uma pessoa trans que só quer partilhar quarto com uma pessoa trans, vamos tentar que assim seja, mas há-de haver momentos em que não vai dar, vão ter de partilhar.”

A investigação científica, em Portugal iniciada há mais de uma década por Carla Machado e Rute Antunes, na Universidade do Minho, mostra que a violência entre casais homossexuais tem a forma, o padrão, a severidade e a motivação da violência entre casais heterossexuais. Numas relações, como noutras, o grande factor é o desequilíbrio de poder. A diferença, ou melhor, o extra,  é o preconceito. Há a ameaça de outing (revelação indesejada da orientação sexual do parceiro se este tentar acabar a relação). E o insulto social (que faz a vítima sentir-se envergonhada por ser lésbica, gay ou bissexual).

Como se vê pelos exemplos referidos, a violência doméstica também não se esgota nas relações de intimidade. Há um risco de rejeição e de abuso por parte de outros membros da família por causa da orientação sexual ou a identidade de género.

O preconceito persiste mesmo dentro de algumas das estruturas pensadas para atender ou acolher vítimas de violência, lamenta Paula Allen. As reacções na esquadra da PSP ou a no posto da GNR nem sempre são adequadas. Nem nas casas-abrigo.

Formação para polícias

Escasseiam os serviços desta natureza. Só há três centros de atendimento LGBT (este e outros dois em Lisboa). O momento parece ser de mudança. Acaba se ser aprovado o primeiro Plano de Combate à Discriminação em razão da orientação sexual, identidade do género e características sexuais. Uma parte das medidas aí contidas destina-se a promover a desconstrução dos estereótipos, em particular no sistema de educação e no desporto, e a especializar e adequar serviços e respostas de combate à violência.

Até pela falta de respostas específicas, estas vítimas tendem a sentir-se particularmente isoladas. Prevê-se uma plataforma de acesso simples e directo para apresentação de queixas por discriminação em razão da orientação sexual e da identidade de género e outras formas de violência contra as pessoas LGBTI. Entendendo que é necessário informar e formar quem trabalha com estas vítimas, prevê-se também formação dos órgãos de polícia criminal, PSP e GNR, para a investigação de crimes de ódio contra as pessoas LGBTI.

Assume-se ainda que importa contrariar a invisibilidade, através da desagregação de dados. No Relatório Anual de Segurança Interna, deverá passar a haver estatísticas sobre crimes e actos de violência com motivações homofóbicas, transfóbicas e interfóbicas.