A Eurovisão também pode ser uma DragÓVisão — o festival como “um palco para mostrar a diversidade”

Missão ou marketing, a promoção da diversidade tem tornado a Eurovisão num espaço que também pertence aos públicos LGBTI. Na estreia de DragÓVisão, o espectáculo que marca o 42.º aniversário do Finalmente Club, em Lisboa, as histórias e o som dos vencedores das últimas décadas.

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Soam as trombetas da Eurovisão no Finalmente Club, em Lisboa, na noite de sábado. Depois do champanhe, a sala está a abarrotar de convidados para a estreia do espectáculo que marca os 42 anos do clube de transformismo mais antigo de Lisboa. Abre-se a cortina e abrem-se os ouvidos para os primeiros acordes de Puppet on a string, o êxito de Sandie Shaw que deu a vitória ao Reino Unido no Festival Eurovisão da Canção de 1967. Mas não é a versão da canção em inglês que “cantam” Stefani Duvet, Samantha Rox e, por fim, Deborah Kristall, que traz a versão em português da música, Marionete, gravada por Simone de Oliveira, a “diva das divas da Música Popular Portuguesa” a quem o espectáculo é carinhosamente dedicado. Por fim, chega a “verdadeira” Sandie Shaw, com uma performance cómica de Nyma Charlles.

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Soam as trombetas da Eurovisão no Finalmente Club, em Lisboa, na noite de sábado. Depois do champanhe, a sala está a abarrotar de convidados para a estreia do espectáculo que marca os 42 anos do clube de transformismo mais antigo de Lisboa. Abre-se a cortina e abrem-se os ouvidos para os primeiros acordes de Puppet on a string, o êxito de Sandie Shaw que deu a vitória ao Reino Unido no Festival Eurovisão da Canção de 1967. Mas não é a versão da canção em inglês que “cantam” Stefani Duvet, Samantha Rox e, por fim, Deborah Kristall, que traz a versão em português da música, Marionete, gravada por Simone de Oliveira, a “diva das divas da Música Popular Portuguesa” a quem o espectáculo é carinhosamente dedicado. Por fim, chega a “verdadeira” Sandie Shaw, com uma performance cómica de Nyma Charlles.

Para o 42.º aniversário do Finalmente, o director artístico Fernando Santos — que encarna, em palco, Deborah Kristall — preparou uma paródia à Eurovisão, a que chamou DragÓVisão, numa alusão à expressão drag queen. “Não podia faltar um pouco de sentido de humor, a nossa pitadinha de sal, para não ser uma cópia das cópias”. À entrada do evento, Teresa Ricou, mentora do teatro Chapitô, diz esperar “sobretudo coisas divertidas e coisas animadas para a gente também dar aqui a volta à cabeça. O que a gente precisa é de espectáculo, não é?” Ao seu lado, Pedro Dias, sócio gerente da discoteca Trumps, reconhece o estatuto da casa de espectáculos de transformismo lisboeta: “A catedral do travesti é o Finalmente, sempre foi.”

O Finalmente não quis perder o embalo da Eurovisão em Lisboa. Não apenas porque a cidade se tem preparado para receber visitantes de toda a Europa e países periféricos (e outros nem tanto), mas também por ser um festival com relevância para parte da comunidade LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transgéneros e intersexo). O final da década de 90 foi particularmente marcante. Em 1997, o cantor islandês Paul Oscar foi o primeiro concorrente a falar abertamente da sua homossexualidade. No ano seguinte, a israelita Dana International vence a Eurovisão com a canção Diva, um hino-“disco” cantado pela gloriosa mulher trans. No palco do Finalmente, 20 anos depois, Jenny Larrue faz a sua interpretação enquanto o público acompanha o refrão — “Viva la Diva/ Viva Victoria/ Cleopatraaaaa” — a dançar.

Fernando Santos conta-nos que as suas memórias festivaleiras são, na verdade, mais ligadas ao Festival da Canção. “Era uma noite especial, as famílias ficavam em casa a ver porque era uma coisa que abrangia toda a família. Era uma coisa que encantava homens, mulheres... e mesmo os machistas não se importavam muito de estar a ver o espectáculo.” Para trás ficou a ideia de fazer um espectáculo baseado no Festival da Canção. “Era impossível, nunca mais acabava o espectáculo. A Tonicha, a Simone, a Madalena… Ia-nos faltar alguém”.

“Já tive muitos números com canções da Eurovisão”, recorda Marco Ferreira, Samantha Rox, que actua no Finalmente há cerca de 30 anos. Um dos números é Je ne sais quoi, canção interpretada pela islandesa Hera Björk na edição de 2010, que já valeu uma visita da cantora ao Finalmente, onde se juntou a Samantha Rox em palco. “Gosto das músicas do festival porque não são cansativas, são óptimas para o espectáculo”, remata Marco, em conversa com o PÚBLICO antes do ensaio. Para Fernando Santos, o brilho, as luzes e, precisamente, o espectáculo da Eurovisão são inspirações naturais para as apresentações de transformismo. “O público tem necessidade de espectáculo, de coisas com que fiquem deslumbrados”, diz-nos. “As pessoas precisam de ser encantadas, de ver coisas que brilhem… que seja diferente do seu dia-a-dia.”

O empresário Hugo Pires, dono da marca de roupa interior Much Underwear, é um dos convidados entusiasmados na plateia. Vem ao espectáculo porque é o aniversário do Finalmente, mas hoje com particular satisfação: declara-se fã acérrimo da Eurovisão, que acompanha “desde os seis anos”, e já na era do YouTube não lhe escapam também as finais dos festivais dos outros países e os ensaios para a final. Tinha 13 anos quando Dana International venceu a Eurovisão, e recorda-se vividamente da importância que teve para si ver uma figura LGBT — “diferente do dito normal... do normativo, aquilo que é aceite pela sociedade” — alcançar um lugar de sucesso. “E cada vez mais a sociedade, pelo menos em Portugal, está cada vez mais aberta.”

Tiago Santos, que encarna a persona Stefani Duvet, nasceu no ano em que Diva venceu a Eurovisão. Não traz memórias do festival europeu, mas recorda-se de um fenómeno mais recente: Conchita Wurst, a drag queen austríaca interpretada por Thomas Neuwirth, que venceu o concurso em 2014. Apesar de não acompanhar a Eurovisão, o jovem de 19 anos recorda-se do impacto que teve, no início da sua carreira, ouvir falar de uma drag queen que tinha vencido o festival. “Eu estava mais ligado aos interesses que podíamos defender no mundo LGBT do que propriamente à Eurovisão. Mesmo sem perceber o que era a Eurovisão, eu ouvi falar da Conchita. Foi uma coisa mesmo em grande”, conta Tiago ao PÚBLICO antes de um dos ensaios.

A diversidade é — seja por marketing ou missão — um dos valores que a organização tenta tornar um dos pilares do evento. Com um público estimado de cerca de 200 milhões de pessoas todos os anos (no ano passado foram “apenas” 182 milhões), estes são momentos de visibilidade que fazem a diferença, em particular para os fãs LGBT que se sentem bem-vindos no universo da Eurovisão.

A “febre”

“A representatividade é importante, tem sempre algum impacto”, confirma Hugo Pires, que é também tesoureiro da Variações — Associação de Comércio e Turismo LGBTI de Portugal. Ao seu lado, Bruno Malveiro reitera que a Eurovisão é “um palco muito importante para mostrar a diversidade”. Casados há sete anos, Bruno acabou por entrar na onda da Eurovisão por arrasto. Lembra-se do tempo em que o concurso era “uma coisa que parava o país”, mas foi apenas desde que conheceu o marido que voltou a sentir a “febre” do evento, ainda que de forma mais moderada. Para este developer, que também é designer na Much Underwear, o concurso obriga, muitas vezes, a confrontar alguns países com o (des)respeito pelos direitos LGBT. “Mesmo que sejam mensagens não muito declaradas, porque há sempre uma tentativa de afastar um bocadinho a Eurovisão das questões políticas, é um palco muito importante para passar mensagens e para mostrar a diversidade.”

“Houve muitas vezes em que alguns países proibiram a bandeira do arco-íris nas arenas em que são filmadas as finais”, recorda Hugo Pires. “Não obstante, houve sempre — sempre, sempre — bandeiras LGBTI representadas no público. Portanto, não desistimos. Estamos cá, somos visíveis, fazemos parte.”

Para os “eurofãs” — muitos se organizam para assistir à Eurovisão com amigos, alguns viajam mesmo para outros países para as finais —, o festival é uma oportunidade de ver artistas diferentes, conviver com pessoas de outros países, manter contacto com outras formas de ser e estar. E apesar de o público da Eurovisão ser bastante heterogéneo — e a diversidade ir além das questões de orientação sexual e identidade de género —, a preocupação com as pessoas LGBT não fica de fora. “Uma das principais perguntas que houve quando ganhou a ucraniana [Jamala] há dois anos foi se Kiev estava preparada para receber pessoas da comunidade LGBTI no seu país. Ela disse que sim, mas sabemos que a Ucrânia é um dos países com mais problemas na Europa a nível de abraçar a comunidade”, recorda Hugo Pires.

E que sinais podemos ler quando são eleitos ícones como Conchita Wurst? “Acho que foi, sobretudo, um conjunto de situações felizes: a canção ser muito bonita, trazer uma mensagem, ele ficar muito bem”, diz Fernando Santos. Mas considera que o impacto de estar ali um homem de barba também contou. “Se ele estivesse com a carinha lavadinha, não sei se interpretariam da mesma forma”. Tiago Santos, ou Stefani Duvet, concorda que a persona Conchita “trouxe muita confusão, mas acho que foi um dos grandes booms do transformismo a nível mundial, e que acho que ajudou as pessoas a aceitarem mais. Afinal, ela ganhou a Eurovisão, não é?”

Na pequena sala do Finalmente, no Príncipe Real, Rise Like a Phoenix foi uma das músicas mais bonitas da noite. Mas foi a canção de Salvador Sobral, em bom português, com uma interpretação do dançarino Diogo Kat, a única que levou o público a cantar em uníssono do início até ao fim.

O espectáculo DragÓVisão fica em cena pelo menos até ao início do Verão. Estreia no arranque da semana da Eurovisão em Lisboa, que terá as semi-finais nestas terça e quinta-feira, e a grande final no sábado à noite.