Aplicar a lei ou fazer justiça?

Uma das ilusões muito divulgadas socialmente é a de que os tribunais têm como obrigação fazer justiça. Não é verdade.

Uma das ilusões muito divulgadas socialmente é a de que os tribunais têm como obrigação fazer justiça. Não é verdade. A Constituição atribui-lhes somente a “competência para administrar a justiça em nome do povo”. E como se administra a justiça em nome do povo? É simples: aplicando as leis que o povo aprovou.

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Uma das ilusões muito divulgadas socialmente é a de que os tribunais têm como obrigação fazer justiça. Não é verdade. A Constituição atribui-lhes somente a “competência para administrar a justiça em nome do povo”. E como se administra a justiça em nome do povo? É simples: aplicando as leis que o povo aprovou.

O caso do José é um exemplo disso mesmo: nada há a censurar aos tribunais que, como lhes compete, se limitaram a aplicar a lei, assim administrando a justiça... Mas a verdade é que ficamos com a inequívoca sensação de que não houve, de facto, justiça.

O José foi condenado um ano e dois meses de prisão efectiva pelo Tribunal de Leiria e viu a sentença confirmada, no passado dia 7 do corrente mês pelo Tribunal da Relação de Coimbra.

Porque foi condenado o José? Porque “no dia 10-04-2017, cerca das 13H35, conduzia um veículo automóvel ligeiro de passageiros, numa via pública sem ser titular de carta de condução”.

Só por isso? Só por conduzir sem carta? Não propriamente.

O José tinha um passado como condutor de ligeiros: desde Maio de 1999 até Abril de 2017, já tinha sido condenado onze vezes pela prática de crimes de condução sem habilitação legal - duas delas em pena de multa, uma em pena de prisão substituída por multa, uma em prisão por dias livres, cinco em pena de prisão suspensa e duas em pena de prisão efectiva.

Face a este criminoso comportamento do José, o tribunal tinha de optar se iria aplicar uma pena de prisão efectiva ou uma multa. Diz o Código Penal que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. E quais são as finalidades da punição, segundo o mesmo código? “A protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente (do crime) na sociedade”.

E o tribunal foi aconselhar-se junto da melhor doutrina sobre a matéria, concluindo que, quando a lei o permite, se deve sempre aplicar uma pena de multa ou de permanência na habitação ou de prisão por dias livres, excepto quando a execução da prisão efectiva se revela como verdadeiramente necessária para afastar o criminoso da futura prática do mesmo crime.

E aqui o tribunal, olhando e pesando todas as anteriores condenações do José por condução sem carta, considerou, com grande segurança, que, no caso do José, a opção por medidas alternativas à prisão efectiva era de excluir uma vez que as mesmas nas palavras do tribunal, não se tinham mostrado “capazes de o levarem a reconsiderar o seu comportamento criminoso” e, por outro lado “a repetição da prática deste ilícito indicia para a sociedade, a falência da norma com o consequente sentimento de insegurança, e para os potenciais infractores, um enfraquecimento da necessidade de se absterem dos seus comportamentos criminosos”.

É certo que as penas de prisão efectiva também não tinham levado o José a deixar de conduzir sem carta, mas isso não foi particular motivo de reflexão para o tribunal e, assim, a sentença do tribunal de Leiria que condenou o José a ir para a prisão por um ano e dois meses foi confirmada pelos juízes desembargadores Luís Ramos e Paulo Valério.

E já agora, quem é o José? Segundo o tribunal, vive com a companheira e com duas menores, sobrinhas, de 7 e 5 anos de idade, cujo pai se encontra preso. Viveram vários anos em barracas e há cerca de um ano estão a ocupar um espaço habitacional que se encontrava vazio, com duas divisões, sem água, nem luz, pertencente a um particular, tendo sido já advertidos pela PSP para abandonarem o espaço. Recebe o José uma reforma de invalidez de 230,26 euros por mês, as menores recebem o abono de família de 70 euros/mês e a companheira tem alguns proventos da venda ambulante no mercado e porta a porta. Com estas receitas pagam o gás (50 euros), a medicação (150) e a alimentação, recebendo apoios do banco alimentar e da cantina social. Acresce que o José foi operado em Dezembro de 2016, no Instituto Português de Oncologia, ao rim esquerdo, devido a um carcinoma, ainda estando em convalescença e fazendo a respectiva medicação diária.

À cautela e para se ressocializar, o José vai um ano e dois meses para a prisão....

 

 

 

 

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