O melhor leitão e os vinhos da Bairrada que enfeitiçam

Com tantos restaurantes, e ainda mais vinhos para escolhermos, o que nos leva a optar mais vezes por uns do que por outros? A empatia, que é hoje o grande segredo do negócio.

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Ricardo Silva

Onde se come o melhor leitão na Bairrada? Se me atrever a apontar o nome de um restaurante, não vai faltar quem me rebata e afiance que o melhor é o do fulano, do sicrano, daqueloutro... Se repetir o exercício com o melhor vinho branco ou tinto português, vai suceder o mesmo. É normal.

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Onde se come o melhor leitão na Bairrada? Se me atrever a apontar o nome de um restaurante, não vai faltar quem me rebata e afiance que o melhor é o do fulano, do sicrano, daqueloutro... Se repetir o exercício com o melhor vinho branco ou tinto português, vai suceder o mesmo. É normal.

A pergunta tem outra por trás: com tantos restaurantes, e ainda mais vinhos para escolhermos, o que nos leva a optar mais vezes por uns do que por outros? A empatia. Na comida, e também um pouco nos vinhos, o melhor para nós é feito quase sempre por pessoas de quem gostamos ou com quem simpatizamos. Num mundo cada vez mais competitivo, a empatia é hoje o grande segredo do negócio. A qualidade do produto será sempre essencial e a sua promoção também, mas, quando estamos perante produtos de nível semelhante e a uma escala pequena, o que acaba por prevalecer é a “história” pessoal, aquilo que nos liga ao produto e ao seu criador.

Há uma pessoa na Bairrada por quem tenho uma grande estima: Ricardo Nogueira, filho do proprietário do restaurante Mugasa, em Fogueira, Anadia. O pai, Álvaro Nogueira, é uma simpatia, mas conheço melhor o filho, que é o assador da casa.

Não é um conhecimento muito antigo. Fui-o vendo durante alguns anos pela Quinta das Bágeiras, de Mário Sérgio, que só serve leitão do Mugasa.

Em 2016, os três e mais um amigo fizemos uma viagem a Champanhe. A viagem coincidiu com a habitual semana de provas que aquela região francesa promove todos os anos. Foi uma festa. Em alguns dias, pudemos provar o melhor de Champanhe… e da Bairrada! Mário Sérgio, que consegue a proeza de vender espumante da Bairrada na terra do Champanhe, quis fazer um jantar de leitão com vinhos das Bágeiras num restaurante com uma estrela Michelin de Epernay e, para isso, fez-se acompanhar de Ricardo Nogueira.

No dia do jantar, Ricardo levantou-se cedo, andou cerca de 100 quilómetros para encontrar dois bons leitões, matou-os, assou-os no forno de um emigrante português que vive próximo de Epernay e à hora certa colocou o leitão quentinho e trinchado na mesa, onde estavam alguns renomados produtores de Champanhe, como Pascal Agrapart e o dono da casa De Sousa et Fils. O jantar foi memorável. No dia seguinte, já na sua adega, Agrapart confessou que nunca tinha comido um leitão tão bom. O que Ricardo fez, sem grandes meios, foi mesmo extraordinário. A partir dessa viagem, fiquei seu amigo e, acima de tudo, seu admirador. A sua história de vida também é comovedora. Mas essa, apesar de ajudar a criar a tal empatia, não cabe aqui.

Recentemente, passei na Fogueira para rever Ricardo e fiquei a conhecer um pouco melhor o pai e a sua fantástica garrafeira. São mais de 8 mil garrafas, de vinhos, aguardentes e uísques. Álvaro Nogueira sabe o lugar certo de cada uma das garrafas. É o seu tesouro, criado ao longo de dezenas e dezenas de anos. Uma boa parte da colecção é de vinhos da Bairrada. Muitos já não se produzem. São verdadeiras raridades. Viajar pela velha Bairrada através destes rótulos amarelecidos é uma experiência sempre exaltante, da qual se sai também sempre a salivar.

Há algo de hipnótico numa garrafa antiga de vinho. Muitas já sabemos que só guardam história e uma bebida morta. Mas há outras que guardam uma longa história e um vinho ainda cheio de vida. O fascínio está na incerteza. Todas as regiões nacionais têm as suas relíquias. No entanto, se falarmos em vinhos tranquilos, poucas se batem com a Bairrada, um dos raros lugares onde vale a pena correr o risco de guardar vinho por muitos anos. Mesmo vinhos baratos conseguem durar em boa forma dez, 20 ou mais anos.

Para produzir grandes vinhos é preciso ter um bom clima e as castas certas nos terrenos certos. A Bairrada tem isso, em algumas cordas. É a nossa “petite France”, a região dos espumantes tensos e fresquíssimos, dos brancos calorosos de calcários e dos tintos sólidos e energéticos de argilo-calcário. Nem tudo é extraordinário, como é óbvio. Uma boa parte do que se produz na Bairrada será sofrível. Mas o que é bom é mesmo bom.

Foi na Bairrada que bebi alguns dos melhores vinhos tintos da minha vida, como o raro Baga 1985 comemorativo do Centenário da Estação Vitivinícola da Beira Litoral, lançado pela Estação Vitivinícola da Bairrada. Este e certas colheitas, já com alguma idade, de Quinta da Dôna, Casa de Saima, Sidónio de Sousa, Luís Pato, Quinta das Bágeiras, Bussaco, Caves São João, Quinta de Baixo, Campolargo, Adega de Cantanhede, só para citar marcas ainda no activo, são vinhos de nível mundial. E há uns quantos mais, de casas já desaparecidas, tão bons ou ainda melhores. Alguns continuam por aí, guardados em garrafeiras como as de Álvaro Nogueira, como testemunhos vivos do grande potencial enológico da Bairrada.

Quem gosta de vinho acaba, mais cedo ou mais tarde, por se deixar apaixonar pela Bairrada. Como acontece com os amores mais sólidos, é uma paixão que dá trabalho, que se vai avolumando com o passar do tempo. No meu caso, começou com uma viagem por alguns lugares da Bairrada há uns bons anos, com um grupo de amigos, a maior parte jornalistas. O “líder” espiritual do grupo era o grande e saudoso David Lopes Ramos. Foram três dias a comer leitão em todas as suas variantes (iscas, feijoada, cabidela, assado) e a beber grandes vinhos. Foi nessa viagem que conheci Lopo de Freitas, o  “príncipe” das Caves de São Domingos. A forma carinhosa e afável como recebeu e brincou com as minhas filhas, ainda crianças, ficou-me gravada para sempre.

Depois desse momento meio iniciático, fui conhecendo muitas outras figuras notáveis da região, algumas pouco conhecidas do grande público mas com um papel muito importante na história do vinho bairradino. Fui somando novos amigos e comprovando o dedo das suas mães para a cozinha (não é, dona Gininha e dona Teresa?). Fui descobrindo mais vinhos, uns mais antigos do que outros, alguns até sem nome. E, sem dar conta, tornei-me naquilo que sou hoje: um duriense enfeitiçado pela Bairrada.

Quer saber onde se come o melhor leitão? No Mugasa, claro.