Cristina Branco matou a sua solenidade

Branco continuidade à revolução da sua música que se tinha iniciado em Menina. Depois de ter levado “um par de estalos” dos novos autores a quem se entregou, entrega-nos uma das suas mais sedutoras colecções de canções.

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Não foi fácil chegar aqui. Tomar a decisão de travar a fundo num caminho que lhe era seguro, mesmo que começasse a sentir-se a repisar as suas próprias pegadas

Cristina Branco não demora muito a admitir aquilo que se adivinha a quilómetros assim que se ouve Branco. Assume ter encontrado a sua juventude quando, mandaria a ordem natural das coisas, se imaginava que pudesse entrar num processo que evita apelidar de decadente mas concede que pudesse ser “descendente”. Quer isto dizer que, tendo feito uma autoanálise após a edição de Alegria (que lhe mostrou com clareza estar a curtos passos de esbarrar na estagnação), preferiu não ser uma respeitável senhora e assumir que podia ainda ser uma audaciosa menina. Não é, obviamente, por acaso que o rejuvenescimento obrado no álbum interior foi carimbado com esse mesmo título: Menina.

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Cristina Branco não demora muito a admitir aquilo que se adivinha a quilómetros assim que se ouve Branco. Assume ter encontrado a sua juventude quando, mandaria a ordem natural das coisas, se imaginava que pudesse entrar num processo que evita apelidar de decadente mas concede que pudesse ser “descendente”. Quer isto dizer que, tendo feito uma autoanálise após a edição de Alegria (que lhe mostrou com clareza estar a curtos passos de esbarrar na estagnação), preferiu não ser uma respeitável senhora e assumir que podia ainda ser uma audaciosa menina. Não é, obviamente, por acaso que o rejuvenescimento obrado no álbum interior foi carimbado com esse mesmo título: Menina.

Tudo isso lhe assoma à boca assim que a vemos acabar de receber em mãos o seu exemplar de Branco e reconhecer-se numa imagem sem maquilhagem, sem encenação, a não querer outra coisa que não seja ser verdadeira. “Sou cada vez mais real e cada vez mais fã de o ser”, diz ao Ípsilon. “À medida que vou experimentando caminhar nesse sentido vou gostando mais, vou-me entusiasmando e entusiasmando também os outros à minha volta. Por isso é que cada vez limpamos mais coisas e deixo a carga para trás — isso é passado.” É, de certa forma, do passado que Cristina Branco se está a livrar. Não por o renegar, mas por ousar escapar-lhe, por não se deixar aprisionar nem definir apenas por aquilo que já fez e já foi. Só que ao renovar, quase por inteiro, os compositores e os músicos que a acompanhavam até então, matou a solenidade. E Branco é o segundo capítulo dessa nova história.

Não foi fácil chegar aqui. Tomar a decisão de travar a fundo num caminho que lhe era seguro, mesmo que começasse a sentir-se a repisar as suas próprias pegadas, nunca seria algo para fazer de ânimo leve e com confiança de aço. Nunca é fácil, de resto. A cada novo disco, Cristina Branco desespera, entra num processo a que chama “degradante”, não escondendo as suas crises de confiança e de autoestima quando se atira a um novo conjunto de canções. Diz com frequência que já não sabe cantar, que já desaprendeu a agarrar numa letra e numa melodia e fazê-las suas. “Não é nada fácil”, confessa, “porque sou sempre a última a acreditar no meu trabalho. Depois começo a dizer essas parvoíces e à minha volta toda a gente se ri. Mas sofro imenso.”

É nessa altura que diz embarcar num “estado meio febril”, em que canta, chora, canta mais um pouco mesmo enquanto dorme, e as canções vão-se-lhe instalando no corpo até já não conseguir respirar sem elas. Soa a um processo tortuoso e duro, de aparente contradição com a leveza que apregoa (e que prova) neste novo fôlego da sua carreira. Cristina sabe disso e garante que esta leveza não é contrária a levar o seu trabalho muito a sério. Mas é algo por que passa para garantir que é o mais autêntica possível na música que solta para o mundo. “As pessoas ouvem isto, caramba, não se poder ser leviana”, atira. “E não ponho discos na rua para venderem em massa. Tem de ser um trabalho sério, o público tem de perceber que sou eu. Não estou aqui para vender discos, estou aqui para fazer música.”

Os dois espasmos premonitórios

Há uma pequena semente plantada em 2011, no álbum Não Há Só Tangos em Paris, que havia de dar frutos plenos passados alguns anos. A canção homónima que Pedro da Silva Martins tinha depositado nas mãos de Cristina Branco era o primeiro claro indício de que a sua música poderia ter um outro rosto. “Esse é o primeiro passo”, reconhece Cristina Branco. “Foi esse tema e as palavras do Pedro, mais aquela roupagem nova que a letra levou, que fez com que começasse a pensar que o caminho poderia ser mais por ali. Há um lado festivo nesse tema que me fazia sentir bem em cima do palco. E foi então que me comecei a perguntar: Porque não hei-de vestir esta pele mais vezes na minha vida?”

Até então, depois de uma primeira fase em que, mesmo cantando desde o início Sérgio Godinho ou José Afonso, a encontrávamos sempre nos arrabaldes do fado, contando com a guitarra e direcção artística de Custódio Castelo (cujo apogeu terá sido atingido no magnífico Sensus) a sua voz mostrara-se vestida de uma elegância que tocava, amiúde, na tal solenidade de que quis agora libertar-se. Foram ainda esses atributos, em parte, a acompanhá-la desde a transição entre Custódio Castelo e Ricardo J. Dias em Ulisses (2005) e cujo alcance se estendeu até Alegria (2013), ampliando a paleta de referências da música popular que se passaram a fazer sentir.

Os primeiros segundos de Alegria, ainda assim, continham já um outro claro sinal de mudança iminente. O ataque à guitarra portuguesa de Bernardo Couto para o tema Alice no país dos matraquilhos, de Sérgio Godinho, é fácil de entender como o segundo espasmo premonitório da mudança consumada em Menina. Era já uma guitarra tocada como se nas suas cordas vibrasse a electricidade do rock, abordada sem as melodias intrincadas do acompanhamento fadista, sintoma da tal limpeza sonora que Cristina percebia, aos poucos, que teria de levar a cabo. Era aí que se começava a perceber que o cançonetismo clássico que poderia aproximá-la progressivamente de um percurso da estirpe da elegância diáfana de uma Joni Mitchell (cujo cancioneiro, aqui e ali, ia visitando), poderia estar de saída. E menos ambíguo se tornaria quando, no início de trabalhos no sucessor de Alegria, começou a “juntar material e a perceber que havia uma série de coisas a soar requentadas”. “Soava-me a coisas que já tinham acontecido na minha vida e não estava a querer repeti-las. Tive de repensar até chegar à conclusão de que tinha mesmo de ir tudo fora e começar de novo. Arrasar e voltar a fazer.”

Para que isso acontecesse, no entanto, seria fundamental concluir uma revolução que foi fixada em Menina e aparece agora reforçada em Branco: rodear-se de sangue novo. Primeiro, através da chegada de um novo pianista, sugerido por Mário Laginha e Inês Lopes em simultâneo. Durante uma reunião na sua nova agência, a Arruada, a cantora resolveu ligar a Laginha, com quem já colaborara em diversas ocasiões anteriores, pedindo aconselhamento acerca de um pianista que lhe parecesse adequado para a sua música. “Comecei a dar-lhe nomes, ele comentava-os, mas às tantas respondeu-me: ‘O gajo certo para o que tu queres é o Luís Figueiredo. Nessa altura entrou na sala a Inês [da Arruada] e disseram os dois o nome do Luís ao mesmo tempo. Percebi logo que só podia mesmo ser ele.”

Um par de estalos

A nova sonoridade de Cristina Branco era anunciada sem meias-tintas em Menina com E às vezes dou por mim, tema da autoria de André Henriques (dos Linda Martini) e Filho da Mãe. Mais uma vez, a guitarra portuguesa de Bernardo Couto aparecia com uma pulsação pilhada ao rock, com o restante embalo garantido pelo swing próprio de jazzmen como Luís Figueiredo (piano) e Bernardo Moreira (contrabaixo). Mas para que o statement não ficasse coxo ou tímido, a este tema juntavam-se outros paridos por Jorge Cruz (Diabo na Cruz), Nuno Prata e Peixe (ex-Ornatos Violeta), Cachupa Psicadélica, Kalaf Epalanga (Buraka Som Sistema), Pedro da Silva Martins e Luís José Martins (Deolinda), e Luís Severo.

Severo é um dos muitos autores que repetem a presença em Branco e um dos casos mais evidentes, face à diferença geracional, daquilo que significava ser olhada a partir de uma perspectiva de músicos bastante mais novos. “Eles olham para mim — não todos — como uma mulher com mais 20 anos”, reflecte a cantora. “Vêem todo o meu processo de crescimento de uma maneira diferente. Há um tempo da nossa vida, entre os 30 e os 40, em que estamos tão embrenhados a fazer coisas, a viver de uma forma tão activa, que deixamos de nos aperceber de que já não temos 20 anos, não nos lembramos disso e continuamos a sentir-nos com essa idade. Mas, de repente, eles olharam para mim como a pessoa que sou. E isso foi muito revelador.”

Esses vários olhares projectados em si, vendo as várias mulheres que Cristina Branco pode ser — de forma mais permanente ou mais passageira, quando apenas as habita no decurso de uma canção — levaram-na também a questionar-se sobre quem é, a partir destes temas que lhe caem no colo para existirem na sua voz. “Acho que eles acabaram por ser um par de estalos”, afirma. “Quando andava à procura, foram eles a dizer-me ‘Toma lá duas lambadas e faz-te ao caminho’.”

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Numa das mais inspiradas e colecções de canções da sua carreira, vêm os repetentes Luís Severo, Luís Figueiredo, Nuno Prata e Peixe, Kalaf ou colabora-dores de há muito como Sérgio Godinho e Mário Laginha, e novos nomes como Beatriz Pessoa, Afonso Cabral

Esse par de estalos devolveu-lhe algo que Cristina Branco nem sabia que tinha perdido. À velocidade que o mundo avança e que os passos se seguem uns aos outros, na necessidade absoluta de manter o equilíbrio e não cair, a cantora tinha deixado escapar a curiosidade e a necessidade de reinvenção que tinham sido o motor inicial da sua carreira. “Estas pessoas estão a olhar para o mundo agora”, diz. E é também isso que emprestam ao seu universo musical. Se ela assume que saiu debaixo das saias da mãe para “um mundo completamente diferente, um mundo megalómano, em que tudo era materialidade, a carreira deles nasce no meio do pântano. É isso que lhes dá valor e que eles transportam para a sua música e que oferecem à música dos outros.” Através destes autores e destas canções, livra-se de preconceitos e descobre a liberdade de poder ser muitas coisas e muitas mulheres em simultâneo, próprias de um tempo em que se “é o que apetece ser, não tem de se ser julgado nem tem de se julgar ninguém.”

Aula de natação

Dos autores que têm ajudado Cristina Branco a desbastar a sua música e a dar-lhe um novo rosto, alguns, como Pedro da Silva Martins ou Jorge Cruz, foram espalhando as suas criações pelos discos de muitas vozes, tornando-se, em parte, um problema também para quem quer construir uma linguagem própria. Cristina Branco não nega que é um equilíbrio difícil de gerir, este em que não quer deixar de voltar a autores em quem acredita sem reservas, em quem reconhece uma forma particularmente brilhante de contar histórias e que imagina como “aqueles tipos que põem uma cadeirinha à porta de casa, ficam a olhar e depois as palavras escorrem por ali fora com uma enorme facilidade”, e a urgência de que o seu mundo não desbarate a identidade que construiu ultrapassando dores, hesitações e desconfianças.

Pedro da Silva Martins, num momento de pausa com os Deolinda, ficou também de pousio em Branco. Jorge Cruz, pelo contrário, entregou à cantora um dos temas mais espantosos do novo álbum, Aula de natação, canção enganadoramente exaltante (a toada irrequieta do piano comanda um tom festivo que não casa com a letra). É uma máscara a que a cantora recorre, a única que conseguiu encontrar para “dizer palavras tão duras e contar uma história tão intensa”, de uma mulher que confessa “ver tantas vezes num pavilhão, à espera primeiro do namorado, depois dos filhos, e por fim ela já cansada”. São três estrofes em que se conta a vida de uma mulher a quem compete esperar pelos outros, que esgota a energia que poderia usar para si e arca ainda com a totalidade das obrigações familiares.

São palavras que doem a Cristina Branco por sentir que fragilizam a mulher, mas são uma finíssima crítica de tempos que não passaram em absoluto e que, por isso, justifica a sua presença em Branco. Da mesma forma que se impõe a chamada da belíssima desaceleração de Eu por engomar, inesperada canção da dupla André Henriques / Filho da Mãe, em torno da falta e da passagem da tempo, exemplarmente resumid nos versos de abertura “O Inverno no joelho quando dobra / estreme e anuncia esta chuva que me acorda”.

Depois, numa das mais inspiradas e sedutoras colecções de canções da carreira de Cristina Branco, vêm os repetentes Luís Severo, Luís Figueiredo, Nuno Prata e Peixe, Kalaf ou colaboradores de há muito como Sérgio Godinho e Mário Laginha, e novos nomes como Beatriz Pessoa, Afonso Cabral (You Can’t Win, Charlie Brown) e Filipe Sambado. Estes que chegam pela primeira vez, além de serem gente em quem Cristina Branco aposta, reflectem também “um papel quase cívico de um cantor” que passa por “ouvir quem está agora a tentar galgar a onda e que nos diz o que está a acontecer neste momento”.

Este momento em que Cristina Branco recusa o peso com que aceitou carregar-se durante anos. Para poder ser, livre de culpas, quem sente ser e não quem se esperaria que, por estes dias, inevitavelmente fosse.