The Post: a verdade morre no escuro

No cruzamento de três vias entre a política, o jornalismo e o cinema, Steven Spielberg escreve um capítulo romântico que não revela a história toda.

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Katharine Graham, a proprietária do Washington Post, e o editor Benjamin C. Bradlee em 1971, durante a crise dos “papéis do Pentágono”, um longo relatório oficial (e “classificado”) sobre a intervenção americana no Vietname

É impossível olhar para este filme de Steven Spielberg sem ter em conta o estado da política americana. Essa foi, aliás, a intenção do realizador, que suspendeu outro projecto para atacar em tempo recorde este The Post e assim dar uma resposta de Hollywood ao que se passa no número 1600 da Pensilvannia Avenue. Na história contada pelo The Post quem está na Casa Branca é Richard Nixon, o homem que tentou matar a imprensa e acabou assassinado politicamente por ela. The Post conta a primeira parte desta história e aproveita para dar papel de relevo a Katharine Graham, a herdeira do Washington Post e que até à primeira crise do jornal nunca tinha tido sequer um emprego – o que também é conveniente quando o actual Presidente pratica a misoginia ao nível do discurso e da prática política.

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É impossível olhar para este filme de Steven Spielberg sem ter em conta o estado da política americana. Essa foi, aliás, a intenção do realizador, que suspendeu outro projecto para atacar em tempo recorde este The Post e assim dar uma resposta de Hollywood ao que se passa no número 1600 da Pensilvannia Avenue. Na história contada pelo The Post quem está na Casa Branca é Richard Nixon, o homem que tentou matar a imprensa e acabou assassinado politicamente por ela. The Post conta a primeira parte desta história e aproveita para dar papel de relevo a Katharine Graham, a herdeira do Washington Post e que até à primeira crise do jornal nunca tinha tido sequer um emprego – o que também é conveniente quando o actual Presidente pratica a misoginia ao nível do discurso e da prática política.

Duas das cenas mais interessantes do filme têm que ver com a proximidade – e a promiscuidade – entre o jornalismo e a política, as duas faces de um mesmo poder que poucas vezes está em desacordo. A imprensa americana nasce e prospera à imagem dos movimentos políticos dos séculos XVIII e XIX e só no século XX começa a assumir a independência que hoje a caracteriza. Mas não sem alguma duplicidade. É à luz desta relação conflituante que decorre o diálogo entre o director do Washington Post, Ben Bradlee, com a dona do título, Katharine Graham, em que o primeiro recorda a relação que tinha com John Kennedy e quão impensável era a ideia de transformar em notícia algo que tivesse vivido a seu lado. A outra cena, memorável, ocorre quando Katharine Graham visita o secretário da Defesa Robert Macnamara, seu amigo, para lhe comunicar que vai ter acesso aos documentos até aí secretos e que os vai publicar. É nessa cena que fica mais bem explicado o papel de cada um dali para a frente: o poder jornalístico compromete-se a publicar a informação que tem, o poder político passará a tentar esconder ainda melhor essa mesma informação.

É tentador – e, na verdade, muito fácil – comparar este período histórico com o que se vive hoje e recorrer a Nixon para falar de Trump. Mas isso não apaga tudo o que aconteceu entre um e outro, e mesmo que fiquemos só por este século há muito para discutir na difícil relação entre jornalismo e política. É difícil esquecer, por exemplo, a cumplicidade do New York Times aquando da construção da mentira sobre as armas de destruição maciça de Saddam Hussein. A conspiração foi fabricada na Casa Branca e convenientemente libertada para a imprensa de forma a que esta se tornasse parte activa na construção do esforço da guerra junto da opinião pública, algo a que o New York Times se dedicou com afinco. Ainda há poucas semanas o antigo jornalista responsável pela cobertura da CIA no New York Times, James Risen, revelou a forma como foi sendo empurrado para fora do jornal graças à pressão feita pela Casa Branca de Bush com a conivência da própria direcção do jornal – ao mesmo tempo que via as muitas notícias falsas sobre o pretenso arsenal de Saddam a fazer primeiras páginas. E revela também que mais tarde, já com Obama no poder, o cerco só se apertou, forçando a sua saída do jornal e um longo processo em tribunal que por pouco não o condenou. Seria, sem dúvida, matéria para um filme – necessariamente mais negro do que o épico filmado por Spielberg.

Foi este mesmo clima, cada vez mais marcado pelo medo e pela subserviência face ao poder político-militar da máquina da administração americana, que levou Edward Snowden a fugir aos grandes títulos da imprensa quando quis revelar os seus segredos. Snowden, autor da maior fuga de informação de sempre relacionada com os serviços secretos, procurou uma documentarista alemã, Laura Poitras, e um colaborador regular do Guardian, Glenn Greenwald, para contar a história que mais abalou o poder americano desde o Watergate. E com isso expôs as fraquezas e inconsistências da mesma imprensa americana – este filme já foi contado pelo mestre da cinematografia do poder, Oliver Stone, o mesmo que já tinha retratado o Richard Nixon de Watergate. O mundo do cinema de Hollywood é certamente mais pequeno do que parece.

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Mas voltemos a Spielberg e à sua obra pensada para os Óscares. É difícil esperar que um jornalista não goste deste filme, especialmente se o representante da espécie tiver alguma espécie de nostalgia pela época dourada da informação convenientemente filtrada e servida em módicas doses matinais. O The Post está feito para ser amado pelos românticos da informação: tem debates vivos nas redações com muito fumo à mistura, tem imagens icónicas dos linótipos que dão origem às manchetes, tem as impressoras a cuspir o papel convenientemente dobrado, tem discussões éticas e patrões simpáticos que ficam do lado dos jornalistas bonzinhos.

É uma ironia fina que seja o Washington Post a referência deste filme. Jornal comprado num leilão pela família Graham em plena grande depressão, passa 30 anos a tentar crescer até que consegue duas jogadas de mestre com os Pentagon Papers e o Watergate – mas que depois passa mais 30 anos a entrar suavemente em letargia até levar com os efeitos da economia digital que arrastou o jornalismo para a maior crise da sua história. E é no meio dessa crise que aparece o salvador Jeff Bezos, ele mesmo milionário dos cliques, que compra com dinheiro de bolso o título à família Graham de forma a prepará-lo para o embate com a Casa Branca de Donald Trump. É a melhor conclusão possível para uma narrativa que ainda agora se começou a revelar: um presidente que despreza a verdade, as tensões raciais outra vez em alta, o papel da mulher na sociedade a ser discutido e os jornalistas a terem de lutar para fazer passar informação aos leitores. Sim, a verdade continua a morrer no escuro, como confirma a epígrafe do Washington Post por estes tempos. E até pode ser a imprensa a dar a luz que expõe a informação, mas regressamos inevitavelmente ao escuro do cinema para melhor entender os interesses que se movem entre uns e outros.