A estância termal falhada que acolheu refugiados bóeres, prisioneiros alemães e agora será um hotel

Foram construídos para transformar as Caldas numa estância termal moderna e receber as elites de finais do século XIX. Mas estes edifícios imponentes acabaram a albergar refugiados da guerra dos bóeres da África do Sul e detidos alemães da I Guerra Mundial. Mais tarde serviram de quartel, de esquadra de polícia, de escola secundária, de sede de associações... Sem obras de manutenção, um século depois transformaram-se numa quase ruína. Um projecto para hotel de cinco estrelas está aí ao virar da esquina para lhes dar nova vida. São os Pavilhões do Parque das Caldas da Rainha.

Fotogaleria

Terá sido de comboio que Rodrigo de Berquó chegou às Caldas no dia 5 de Novembro de 1888. O caminho-de-ferro tinha sido inaugurado no ano anterior, tornando a então vila termal mais acessível a uma população que procurava as águas sulfurosas do hospital e descobria com encanto as viagens de lazer.

A “viação acelerada”, como então se chamava ao comboio, colocava as Caldas da Rainha a pouco mais de três horas de Lisboa, exigindo uma autêntica revolução na vila, um assombro de modernidade, uma ruptura com o velho conceito do hospital termal mais antigo do mundo, com vocação assistencialista, em benefício de uma estância burguesa capaz de atrair tanto a velha aristocracia como a nova burguesia endinheirada.

Seriam estes os pensamentos de Rodrigo Berquó que nesse mesmo dia preside à primeira reunião como presidente da administração do Hospital Real das Caldas da Rainha. Arquitecto e engenheiro de formação, o novo responsável das termas caldenses era um homem culto e viajado. E tinha comprovada experiência no ramo por ter passado os últimos sete anos a erguer as termas de Caldas de Felgueira (Nelas). Mais: era um progressista num momento político em que o Partido Progressista estava no poder. Tinha a conjuntura a seu favor.

A sua estada nas Caldas da Rainha vai revolucionar a pacata vila de então. Berquó tem aquilo que hoje se designa por uma visão estratégica. Quer fazer da vila uma estância termal ao nível das melhores da Europa. Quer que o termalismo inclua também fruição e lazer. Quer criar atractivos, diversões, pontos de interesse para os aquistas. Quer, no fim de contas, criar algo muito próximo daquilo que hoje se chama um spa, em detrimento do velho conceito de hospital dedicado à cura de doenças através das águas.

Para tal é necessário criar infra-estruturas, fazer obras. E as primeiras serão feitas em pouco tempo: revitaliza o antigo Passeio da Copa e transforma-o no extenso jardim que é hoje o Parque D. Carlos I e que inclui um lago artificial. Estamos já em 1892.

Mas o arquitecto-administrador era ambicioso. Jorge Mangorrinha, investigador caldense, diz que Berquó conhecera as termas francesas de Le Boulon, Vernet Les Bains e La Preste Les Bains antes de vir para as Caldas e que regressaria a França, em 1890, para visitar Vichy.

Terá vindo destas viagens a inspiração para construir nas Caldas um edifício termal dentro das áreas arborizadas, por forma a permitir que os aquistas fruíssem destes espaços verdes e relaxantes. O Parque D. Carlos I afigurava-se assim como o cenário perfeito para ali construir as termas do séc. XX.

As obras começam em 1894.

Jorge Mangorrinha descreve o projecto. “Compõe-se de sete pavilhões, dos quais cinco se destinavam a enfermarias e a uma galeria com 55 metros de comprimento por 9 de largura, comunicando com os cinco pavilhões referidos. O sétimo pavilhão, situado a sul no extremo da grande galeria e com acesso a esta por meio de passagens descobertas, destinar-se-ia a instalações sanitárias. Junto a este pavilhão, ficaria situada a torre para observatório meteorológico”.

Os materiais usados são a pedra e o tijolo e nas lajes são incutidos materiais inovadores para a época: vigas de ferro e elementos cerâmicos posteriormente revestidos com soalho de madeira. André Barros, na sua tese de mestrado O Impulso das águas: contributo para a identidade das Caldas da Rainha, refere que as "fenestrações tinham a dimensão do piso, possibilitando por isso uma grande entrada de iluminação e ventilação natural e que o recorte das cantarias e dos cunhais aqui construídos são ao estilo de Luís XIII, similares às do palácio do Duque de Loulé, estando as pedras de cantaria colocadas em volta das fenestrações com tamanhos variáveis”.

O hospital que nunca chegará a sê-lo nasce, assim, como obra de um único homem, associado a uma visão de modernidade e a um conceito de estância balnear de excelência.

Um conceito que está bem expresso neste excerto de um artigo da Gazeta dos Caminhos de Ferro de 16/09/1899 e que representa o espírito da época sobre as estâncias termais: “para formar uma estação de banhos, há que ter largas avenidas ensombradas de árvores, bonitos passeios com bancos, elegantes chalets entremeando com outras edificações mais modestas, hotéis razoáveis onde se encontre boa comida e pousada confortável, iluminação nas ruas e praças, asseio por toda a parte, um ou dois clubes elegantes para as valsas e os jogos à noite, um parque para os passeios à tarde e um estabelecimento de banhos de água-doce”.

Mas em 1896 as obras são subitamente interrompidas devido à também súbita morte de Rodrigo Berquó que sucumbe a um ataque cardíaco.

André Barros conta que “foi designado o médico José Filipe de Andrade Rebelo novo administrador do Hospital Termal, que se inteirou do estado das obras que o seu antecessor promovera. Após o parecer do capitão de engenharia Basílio Alberto de Souza Pinto, que concluiu que apesar do estado avançado das obras, faltaria ainda bastante, tanto em termos de execução de obras como financeiros, para terminar o edifício que tinha já ultrapassado o orçamento estipulado”, as obras são abandonadas.

Foto

Com esta decisão, os Pavilhões do Parque jamais seriam a estância termal idealizado por Berquó.

Foi um naufrágio à vista do porto? Nicolau Borges, investigador das Caldas da Rainha, diz que, embora o edifício estivesse quase terminado, não se pode afirmar que ficou a faltar muito pouco para se concretizar o sonho de Berquó. “Ficou tudo por concluir porque o conceito de termas cosmopolitas, a ideia de modernidade e de ruptura com o velho hospital do séc. XVI [o Hospital Termal fundado pela Rainha D. Leonor data de 1485] fracassou. Os Pavilhões foram um acto falhado”.

Os primeiros ocupantes - os Bóeres 

A utilização dos imponentes edifícios passou a ser um problema do Hospital Termal. Durante cinco anos, aparentemente, os Pavilhões ficam vazios, mas para quem acredita na teoria do caos, parece certo que o bater de asas de uma borboleta em Tóquio pode provocar um tufão em Nova Iorque. Neste caso o efeito borboleta parte do território que viria a ser a África do Sul e da guerra que então opunha os colonos bóeres (na sua maioria provenientes da Holanda) ao exército britânico.

Para fugir às chacinas perpetradas pelos ingleses, muitos bóeres fugiram para a então colónia portuguesa de Moçambique, mas Inglaterra não gostou de ver tantos inimigos tão próximos do teatro de guerra e pressionou Portugal a retirá-los de lá.

É assim que milhares de bóeres são enviados para Abrantes, Alcobaça, Peniche e Caldas da Rainha. 

Esta última acolhe 300 refugiados que, diga-se de passagem, são recebidos como heróis e acarinhados pela população, que tinha ainda bem presente o sentimento anti-britânico provocado pelo Ultimatum inglês de 1890.

Foto

O Hospital Termal é o primeiro local de alojamento dos estrangeiros, mas a partir de 15 de Maio, com o início da época balnear, os que não se tinham mudado para casas particulares, passam a residir nos Pavilhões do Parque constituindo-se como os seus primeiros inquilinos.

“O edifício estava inacabado e vazio”, escreve o historiador sul-africano O. J. Ferreira no seu livro “Viva os Bóeres! Boregeinterneerdes in Portugal tydens die Anglo-Boereoorlong, 1899-1902”. E refere que os refugiados “estiveram em cinco salas com cerca de 10 por 30 metros cada uma, no segundo andar, de onde eles desfrutavam de uma linda vista do parque público, com jardim de rosas, palmeiras e um lago. Duas das quatro salas eram usadas por homens acima dos 16 anos e duas por senhoras e crianças enquanto a quinta sala era usada como refeitório”.

Outros espaços dos Pavilhões foram usados como escola destinada aos mais novos e para serviços religiosos dos bóeres, na sua maioria protestantes.

Uma pequena guarnição militar guardava os refugiados e estava também alojada nos mesmos edifícios, num prenúncio de uma utilização futura mais consolidada pois, por duas vezes, os Pavilhões do Parque viriam a ser um quartel onde ficaria instalado o Regimento de Infantaria nº 5.

Os próximos ocupantes seriam também estrangeiros, desta vez alemães. Mas para já estamos em 1910, a monarquia é substituída pela República e na vila das Caldas o Hospital Real deixa cair o “Real” e passa a designar-se Hospital Termal Rainha D. Leonor em homenagem à sua fundadora. Com o “Real” caem também as rendas que a instituição recebia da família real e as termas passam a depender apenas das receitas dos seus utilizadores e do Orçamento de Estado.

O cenário não fica assim propenso a que se resolva o problema dos Pavilhões do Parque, que tardam em cumprir a sua missão de balneário termal de uma estância de luxo. Agora, depois dos refugiados vão receber prisioneiros. Aquistas é que ainda não.

Alemães presos nas termas

Em 1916, com a entrada do país na I Guerra Mundial, o governo da jovem República Portuguesa manda deter os cidadãos alemães residentes em Portugal e proceder ao aprisionamento de todos os navios daquela nacionalidade e seus tripulantes. As Caldas da Rainha são um dos destinos escolhidos pelo governo para alojar os detidos, que inicialmente são encaminhados para o Hospital Termal.

Entre os “súbditos alemães” detidos estão tripulantes dos navios – marinheiros, telegrafistas, fogueiros, criados, engenheiros, alfaiates, barbeiros, padeiros, cozinheiros, músicos – e cidadãos daquela nacionalidade (ou seus descendentes) que residiam em território português.

Foto

Tal como com os bóeres, os alemães acabam por se mudar do Hospital Termal para os Pavilhões do Parque. Uma carta do presidente da Junta da Paróquia ao presidente da Câmara das Caldas pede que este “se digne pedir ao Ministro do Interior para se fazerem as obras previstas nos Pavilhões do Parque a fim de serem ali internados os alemães, visto estar a aproximar-se a época balnear e o edifício do Hospital D. Leonor [Hospital Termal] precisar como de custume de reparações e limpesa como todos os anos são feitas”.

As centenas de “súbditos inimigos” (como também se designavam na correspondência oficial) são assim transferidos para os Pavilhões do Parque onde ficam até ao fim do conflito. Não sendo considerados prisioneiros de guerra, os alemães tinham liberdade para passear pelos jardins à beira do lago e organizam até jogos de futebol nas suas imediações.

Em 1920 os Pavilhões do Parque têm, pela primeira vez, uma utilização mais recreativa. A I Exposição Agrícola das Caldas realiza-se no Parque D. Carlos I e ocupa também parte dos Pavilhões que, por essa altura, albergam também uma unidade militar.

A partir de 1924, o posto de turismo local é instalado no rés-de-chão dos Pavilhões e em 1925 o recém-criado jornal Gazeta das Caldas tem aí a sua primeira redacção.

Quartel com vista para o parque

A vocação inicial dos edifícios vai-se esbatendo com o tempo, na mesma medida em que o termalismo perde o glamour a que estava associado na Belle Époque e as vilegiaturas nas Caldas perdem o seu carácter mundano. O sonho de Berquó não encontra defensores. Finda a I República, pragmaticamente o Estado Novo vai dar uma utilização que aproveita o potencial daqueles edifícios altos: durante 23 anos, entre 1927 e 1950 os Pavilhões do Parque serão o quartel militar do Regimento de Infantaria 5. O único quartel do país cujas casernas têm vista para um frondoso parque e um lago que integram um património termal ainda activo.

Mas a utilização conferida aos Pavilhões que mais tempo perdurou foi cultural, e não militar. A biblioteca instalou-se neles em 1962 e só de lá saiu em 1997. Gerações de caldenses guardam ainda hoje memórias das idas à biblioteca do parque.

Nos anos setenta do século passado ali funciona também o Magistério Primário e mais tarde escola secundária. Paulo Caiado, 53 anos, guarda a memória do seu primeiro dia de aulas no Outono de 1975: “à nossa frente estava o majestoso edifício de três alas conhecido por todos como ‘Os Pavilhões do Parque, mas que para nós era o edifício mais importante da cidade. Era ‘’O Liceu’’!”.

E prossegue: “não sei se foi aquela a mesma sensação que Harry Potter teve ao chegar a Hogwarts. O edifício era enorme, majestoso, gótico, belo na sua fealdade, frio e velho, sobretudo velho. Tinha sido enfermaria, quartel, lugar abandonado, até se tornar o primeiro liceu da cidade, quando após quase um século, foi permitido às cidades de província, que não as capitais de distrito, terem escolas onde os jovens que queriam seguir a via universitária poderiam continuar os seus estudos”.

Tal como acontecera com todos os residentes do velho edifício, o melhor de tudo era o enquadramento, a proximidade do Parque. “Os alunos aproveitavam os furos (intervalos nos horários de aulas) para ir passear para o parque, andar de barco, jogar ping-pong na Casa dos Barcos, ou jogar ténis. Era no maravilhoso Parque D. Carlos I, onde se localizava o liceu, que começámos os primeiros namoros, demos os primeiros beijos.”

Foto

Mas o liceu – que na verdade já era uma escola secundária – acabaria por mudar-se para um novo edifício construído de raiz noutro local da cidade. O último estabelecimento escolar a ocupar os Pavilhões do Parque seria a Escola Técnica Profissional do Oeste que ali abriu portas em 1990, com inauguração presidida pelo ministro Roberto Carneiro, tal como atesta a lápide comemorativa que ainda hoje está afixada na parede.

Com a saída desta escola, em 2005, também para um novo edifício, fechou-se um ciclo. Os Pavilhões do Parque estavam já demasiado velhos e acusam ruína. Duraram cem anos tiveram utilizações várias, mas como nunca houve um desígnio, a sua manutenção foi descurada. A partir de agora começa a ser perigoso usá-los.

Ainda assim foram sede de várias associações: clube de cinema, associação de artesãos, liga dos combatentes, núcleo da Cruz Vermelha.

À beira da ruína

Mas em 2011 um relatório técnico do Centro Hospitalar Oeste Norte diz que os pavilhões “apresentam gravíssimos problemas estruturais, correndo o risco de ruir em vários pontos”. Uma vedação de protecção é colocada no seu perímetro.

Durante um século o edifício pertenceu ao Estado. E fazendo parte integrante do Hospital Termal caldense, que por sua vez fazia parte do centro hospitalar local, a sua tutela foi sempre o Ministério da Saúde.

Historicamente, o administrador do Centro Hospitalar era quase um segundo presidente de câmara, tal era o património que tinha a seu cargo na cidade: hospitais, Parque D. Carlos I, Pavilhões do Parque, Mata Rainha D. Leonor, um palácio, um pinhal, igrejas e vários edifícios e terrenos. A par dos cuidados de saúde, exigia-se-lhe também que fosse um bom gestor do vasto património termal, tarefa cada vez mais difícil à medida que minguavam os orçamentos e a cidade e as suas elites eram incapazes de ter uma visão estratégica para o seu futuro.

Foto
Sandra Ribeiro

Em 2011, em plena crise das finanças públicas, o então ministro da Saúde, Paulo Macedo, mete o dedo na ferida: diz que não é vocação do seu ministério alimentar os pavões do parque das Caldas da Rainha (curiosamente não havia pavões no parque, mas tão só patos). E com a ‘troika’ a aterrar em Lisboa, o país aterrorizado com os cortes e o Governo a falar na falência do Estado, o município caldense aceita ficar com a tutela do património termal da cidade, cuidando, a partir de agora, daquilo que era antes incumbência da Administração Central.

Os activos são espartilhados, em desrespeito pela unicidade do património da cidade. O Parque D. Carlos I está agora sob gestão da junta de freguesia, o velho Hospital Termal (que está há anos fechado devido à descoberta de bactérias) deverá ser explorado pelo Montepio Rainha D. Leonor (uma associação mutualista) e os famosos Pavilhões do Parque foram postos a concurso público internacional para neles se fazer uma unidade hoteleira com spa (cumprindo-se, assim, 120 anos depois, os desígnios de Rodrigo Berquó).

O concurso, lançado em 2016, teve um único concorrente – a Visabeira, que pretende ali instalar o Montebelo Bordallo Pinheiro, um hotel de cinco estrelas que terá ligação à fábrica criada por Rafael Bordalo Pinheiro, a poucos metros dali. O investimento de 14,4 milhões de euros prevê uma capacidade de 214 camas, restaurante, salas para eventos, galeria e atelier de cerâmica e, claro, piscinas e spa.

A questão não é pacífica, sobretudo porque o projecto abarca um outro edifício vizinho dos Pavilhões do Parques – o antigo clube, que foi casino e mais tarde Casa da Cultura. Constitui, com o seu “céu de vidro” (um tecto abobadado que deixa entrar a luz do dia), uma porta de entrada no Parque D. Carlos I, mas a Visabeira quer fazer dele a recepção do hotel. Na cidade, os partidos da oposição à maioria social-democrata têm vindo a denunciar o que consideram ser um atentado ao património e pedem a reformulação do projecto.

Contactada pelo PÚBLICO, a Câmara das Caldas diz que a Visabeira e a Direcção-Geral do Património e Cultura têm vindo a ter reuniões informais para discutir o projecto e salvaguarda que a sua aprovação depende daquela entidade e da própria autarquia. A obra, segundo o contrato de concessão, terá de estar concluída até 2 de Dezembro de 2020.

A concretizar-se o projecto, e tendo o hotel uma vocação termal, pode ser que 120 anos depois, Rodrigo Berquó possa finalmente repousar em paz.